domingo, 3 de abril de 2011

ABÍLIO PACHECO


ELEGIA DE MARIA


Maria deitada na cama

na lida profana da noite

na noite soturna do quarto

olha as horas paradas

e espera o brilho das horas

e espera o sol de amanhã.


No corpo frágil o sustento

fértil odor de hortelã,

nos beijos, pancadas na cara

gemidos, carícias e dor;

estranhos estames fincados

(vibrante delírio frenético)

grãos de pólen gozados,

nas entranhas - carne em flor.


Depois de tanto sofrer

no martírio noturno,

o vírus maldito da morte

lhe leva a um longo suplício

na solidão do seu quarto,

na solidão da espera.


Maria velha é levada

ao fim dos dias tão cedo.

Não existe mais sonho.

Não existe mais quimera.

Não existe mais fantasia.

Não existe mais... Maria.



HABITAÇÃO


Há um silêncio seco percorrendo as paredes da casa:

Ratos roem roupas sujas esquecidas nos sofás,

fazem seus ninhos entre os nossos tecidos

e mijam nas louças adormecidas sobre a pia;

Baratas revoam sobre a mesa da sala

são insetos burocráticos, bibliófilos, alfarrábicos

que se fartam nos papéis, cartas, revistas e jornais

que há dias estão reunidos na mesa de jantar;

Grilos entoam acordes de árias desafinadas

e muriçocas lhes riem finos gargalhos;

Formigas carregam as migalhas da última ceia

da ceia de ontem, da ceia de sempre;

Uma única mariposa tenta a morte em vão na luz da sala;

E aranhas ressecadas nos telhados podres

permanecem estáticas à teia urdida


Enquanto os gatos, os cães

e os homens estão perdidos pelo mundo.



HORAS PASSADAS

À minha mãe Maria Cordeiro


Eu andava sozinho

nos jardins da minha memória

tentando sentir o perfume

das flores murchas no tempo.

Havia uma ironia colorida

nas folhas espalhadas pelo chão

e uma tristeza profunda

onde antes havia uma rosa.


Hoje... nenhuma abelha me traz

as flores murchas do tempo,

horas que não voltam mais.



NEREIDA EM SALINAS

À nereida Deurilene Sousa


... seguro tua mã e contigo navego

(corpo velido) pelas alvíssimas

planuras ondulantes dos lençóis

de areia da enseada

do quarto do chalé


pelos vagas: ondas suaves,

sussurros de sereia,

corais em solo e em si bemol!


Deixemo-nos levar por este canto navegante

e nenhum arrecife nos há de avariar a nave.



TESSITURA NOTURNA

A João Cabral de Melo Neto


Um latido apenas

não protege a rua

ele precisará sempre

que os cães o apanhem

e o lancem a outros cães

e a outros latidos

tal que somados todos

(latidos e cães) na noite

formem (no arca-

bouço da matilha)

uma redoma protetora

em torno da rua.



NO PRELO


Se a minha palavra é a minha busca

de uma vida inteira, em todo mundo

e ela dorme encantada à sombra

de um livro raro, quiçá

encontrá-la-ei num alfarrábio,

num sebo, numa biblioteca pública...

Quem sabe minha resposta ainda

esteja no prelo.



OCASO


Um pássaro sob o sol da tarde:

Um dia, ave liberta em nuvens

colorindo o brilho silente:

Hoje, um olhar tímido entre grades

e um desejo pulsando no peito.


Mas o peito vai se apertando

contra o vazio do ventre

e o passarinho triste

sob o sol da tarde a pino

entre fortes grades definha.


Então,

ao som dos raios solertes

a ave liberta em vôo

bate as asas da alma

pelo azul do infinito...



Abilio Pacheco é baiano de Juazeiro, e vive no Pará deste os sete anos. Coordena o Curso de Letras no Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará. Publicou "Poemia"e "Mosaico Primevo", de onde foram extraídos os textos acima. Fundou a Editora Literacidade, onde promove o surgimento de novos talentos da Literatura Brasileira. Contatos: editoraliteracidade@uol.com.br .







2 comentários:

  1. Todos os poemas são belíssimos!

    "Elegia de Maria" bateu forte em mim. Retrato de tantas mulheres que felizmente encontram um poeta que traduza seu sofrimento.

    Parabéns!

    Beijos

    Mirze

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  2. Elegia de Maria e Habitação: um espetáculo! Mas gostei de todos. Impavável essa:... e muriçocas lhes riem finos gargalhos;

    Exelente a qualidade de seu trabalho, e a veia poética explodindo versos maravilhosos.
    Beijos,

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