ELEGIA DE MARIA
Maria deitada na cama
na lida profana da noite
na noite soturna do quarto
olha as horas paradas
e espera o brilho das horas
e espera o sol de amanhã.
No corpo frágil o sustento
fértil odor de hortelã,
nos beijos, pancadas na cara
gemidos, carícias e dor;
estranhos estames fincados
(vibrante delírio frenético)
grãos de pólen gozados,
nas entranhas - carne em flor.
Depois de tanto sofrer
no martírio noturno,
o vírus maldito da morte
lhe leva a um longo suplício
na solidão do seu quarto,
na solidão da espera.
Maria velha é levada
ao fim dos dias tão cedo.
Não existe mais sonho.
Não existe mais quimera.
Não existe mais fantasia.
Não existe mais... Maria.
HABITAÇÃO
Há um silêncio seco percorrendo as paredes da casa:
Ratos roem roupas sujas esquecidas nos sofás,
fazem seus ninhos entre os nossos tecidos
e mijam nas louças adormecidas sobre a pia;
Baratas revoam sobre a mesa da sala
são insetos burocráticos, bibliófilos, alfarrábicos
que se fartam nos papéis, cartas, revistas e jornais
que há dias estão reunidos na mesa de jantar;
Grilos entoam acordes de árias desafinadas
e muriçocas lhes riem finos gargalhos;
Formigas carregam as migalhas da última ceia
da ceia de ontem, da ceia de sempre;
Uma única mariposa tenta a morte em vão na luz da sala;
E aranhas ressecadas nos telhados podres
permanecem estáticas à teia urdida
Enquanto os gatos, os cães
e os homens estão perdidos pelo mundo.
HORAS PASSADAS
À minha mãe Maria Cordeiro
Eu andava sozinho
nos jardins da minha memória
tentando sentir o perfume
das flores murchas no tempo.
Havia uma ironia colorida
nas folhas espalhadas pelo chão
e uma tristeza profunda
onde antes havia uma rosa.
Hoje... nenhuma abelha me traz
as flores murchas do tempo,
horas que não voltam mais.
NEREIDA EM SALINAS
À nereida Deurilene Sousa
... seguro tua mã e contigo navego
(corpo velido) pelas alvíssimas
planuras ondulantes dos lençóis
de areia da enseada
do quarto do chalé
pelos vagas: ondas suaves,
sussurros de sereia,
corais em solo e em si bemol!
Deixemo-nos levar por este canto navegante
e nenhum arrecife nos há de avariar a nave.
TESSITURA NOTURNA
A João Cabral de Melo Neto
Um latido apenas
não protege a rua
ele precisará sempre
que os cães o apanhem
e o lancem a outros cães
e a outros latidos
tal que somados todos
(latidos e cães) na noite
formem (no arca-
bouço da matilha)
uma redoma protetora
em torno da rua.
NO PRELO
Se a minha palavra é a minha busca
de uma vida inteira, em todo mundo
e ela dorme encantada à sombra
de um livro raro, quiçá
encontrá-la-ei num alfarrábio,
num sebo, numa biblioteca pública...
Quem sabe minha resposta ainda
esteja no prelo.
OCASO
Um pássaro sob o sol da tarde:
Um dia, ave liberta em nuvens
colorindo o brilho silente:
Hoje, um olhar tímido entre grades
e um desejo pulsando no peito.
Mas o peito vai se apertando
contra o vazio do ventre
e o passarinho triste
sob o sol da tarde a pino
entre fortes grades definha.
Então,
ao som dos raios solertes
a ave liberta em vôo
bate as asas da alma
pelo azul do infinito...
Abilio Pacheco é baiano de Juazeiro, e vive no Pará deste os sete anos. Coordena o Curso de Letras no Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará. Publicou "Poemia"e "Mosaico Primevo", de onde foram extraídos os textos acima. Fundou a Editora Literacidade, onde promove o surgimento de novos talentos da Literatura Brasileira. Contatos: editoraliteracidade@uol.com.br .
Todos os poemas são belíssimos!
ResponderEliminar"Elegia de Maria" bateu forte em mim. Retrato de tantas mulheres que felizmente encontram um poeta que traduza seu sofrimento.
Parabéns!
Beijos
Mirze
Elegia de Maria e Habitação: um espetáculo! Mas gostei de todos. Impavável essa:... e muriçocas lhes riem finos gargalhos;
ResponderEliminarExelente a qualidade de seu trabalho, e a veia poética explodindo versos maravilhosos.
Beijos,