segunda-feira, 20 de agosto de 2012

DONIZETE GALVÃO





AUTO-RETRATO COMO BOI

Eu boi.
Boi de mim mesmo.
Boi sonso.
Boi de canga.
Boi de carro.
Boi de ônibus.
Boi de arado.
Boi sangrado por ferrão.
Boi de carreto.
Boi em prédio de vidro.
Boi com crachá
E carteira assinada.
Boi comprovado.
Boi indistinto
Na boiada da cidade.
Boi tangido.
Boi bernento.
Boi de joelhos
Sem um mugido
Na escuridão.
No curral da insônia,
Rumino palavras pastadas
Na ribanceira dos dias.


NOTÍCIAS DO DIA

Alarido de periquitos
Que se camuflam
Por entre o verde
Das touceiras de taquara.

Surpresa de amoras,
Maduras no ponto exato,
Em meio ao emaranhado
Da moita de espinhos.

Roçar de andorinha
Entre voo e pouso.
Parábola desenhada
Por vento e asa.


ESCOICEADOS

Meu pai e eu
Nunca subimos
Num alazão
Que galopasse
Ao vento.
Tínhamos um burro
Cinza malhado:
O Ligeiro.
Foi apanhado
De um conhecido
Por ninharia.
Chegou com fama
De sistemático,
Cheio de refugos.
De trote tão curto
Que dava dor
Nas costelas.
De certa vez,
Caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
No pedregulho.
Levamos
Bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
Nunca subimos
Na vida.


DIA DE NADA

O domingo expõe
Seus andaimes de sombras,
Zonas de exasperada ferrugem,
Falas e imagens deterioradas.
Unhas imploram
Para serem roídas.
Há um facho de luz
Cruzando o plexo.
Há a irrupção do desejo,
Aragem de um espasmo,
Antes que as ruínas das horas
Girem seus dentes
E triturem os ânimos.
Imobilidade do corpo
Em seu centro vazio.


ARQUITETURA DA INSÔNIA

A palavra perdida
Na caçamba de entulhos
Entre cacos de azulejos
E restos de reboco.

Mergulhada no caos,
Sem eixo, sem direção
Girando na história
Em busca da uma saída.

Sob as nuvens que assomam,
Palavra tensa e espinhenta,
Esticada como cerca elétrica,
Prestes a ser deflagrada.

Uns inventariam bens
Que cabem numa gaveta,
Mas que saturam o coração
De afeto e ressentimento.

Já cantam os paturis
No voo rumo à represa.
A cidade surge sob fumaças
E o insone reconta detritos.


SATURAÇÃO

No círculo que a xícara de café
Deixa desenhado no pires,
O grão amargo do equívoco.
O olhar preso, a vida presa.
Ânsia que confrange os ossos.
Ninguém atura o risco do cerco.
Ninguém sai dele de mãos vazias.


DESAJEITO

O homem inacabado
Não tem posição
Que lhe traga conforto
Na cama.
Luta a noite toda
Com o colchão
Sem que seu corpo
Torto possa encontrar
Abrigo.
O pensamento
Do homem inacabado
Gira em falso
Como as rodas de um carro
Encravado na lama.



DONIZETE GALVÃO nasceu em Borda da Mata, sul de Minas, em 1955. Cursou a Faculdade de Administração de Empresas de Santa Rita de Sapucaí e, em São Paulo, fez Jornalismo na Cásper Líbero. Trabalha como jornalista e publicitário. Recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte em 1988 pelo livro Azul Navalha, que lhe rendeu ainda a primeira indicação ao Prêmio Jabuti. A segunda indicação viria em 1997 com A Carne e o Tempo. Foi indicado ainda aos prêmios Ciudad de Madrid e Portugal Telecom (2003). Os poemas acima foram retirados dos livros Ruminações, de 1999, e O Homem Inacabado,  de 2010. E-mail para contato: dgalvao@uol.com.br