domingo, 23 de janeiro de 2011

SÔNIA BRANDÃO


PRIMAVERA
É primavera.
Deixo o barco do silêncio.

Uma rosa se abre no meu peito.
Meu pássaro volta a cantar.

Saboreio em êxtase
o novo gosto da vida.


O SILÊNCIO
No rio inquieto
o murmúrio das águas
onde te espelhas.

Não te reconheces.

Teu sangue
ainda flui nas águas.

Existes.
Como se já não fosses
ou fosses outro.

Pouco importa.

Basta o silêncio
das pedras no caminho.


O AÇUDE DA MEMÓRIA
O ovo do pássaro fecunda o tempo.
Mergulho fundo no açude da memória.
Vôo da infância à maturidade.

aabro os olhos para o que sou
e o instante em que dormirei
como dorme o crepúsculo.


CAVALGADA
Faço um cavalo
de vento e vertigem.

Vagamos pela noite,
subimos juntos a montanha.

Ele,
cheirando o silêncio,
pastando os sonhos entre as pedras.

Eu,
bebendo a vida,
fartando-me de estrelas.


OS ANJOS
É inútil matar os anjos.
Onde jogar as asas?
Onde enterrar os corpos?

Anjos não têm asas.
Anjos não têm corpos.

Os anjos são eternos.
Cada vez mais fortes,
após cada morte,
renascem dentro de nós.


ALENTO
Os mortos não estão mortos.
Os mortos não estão sob a terra.
Estão na árvore que treme.
Estão na chuva que cai.
Estão na água que corre.
Estão na casa, estão entre nós.
Os que morreram jamais partiram.
Sônia Brandão, de Bauru, é autora de "Prenúncio". Seu Blog (http://passaroimpossivel.blogspot.com) é dos mais belos existentes, atualmente, no que diz respeito a Poesia. Entre outras distinções, Sônia foi premiada duas vezes no Mapa Cultural Paulista (2003/2004 e 2007/2008).

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

SÉRGIO BERNARDO


PORTARIAS

Febre que o queimasse,

um trago.

Às vezes nem isso, apenas saliva,

mineral de sob a língua,

veio que não se esgota. No chão,

entre duas portarias,

algo que se move.

Às vezes nem isso, embrulho

de peleja e mal cheiro,

imóvel no asfalto,

carga

a postos para o rabecão da prefeitura.

Ali,

agora.

Depois, em nenhum lugar.



RELIGARE

Estes metais

cruzados

para pouso de um homem,

no fundo da casa,


ofuscam

a fome circundante

fora,


na crueza do asfalto

a multidão de crucificados espera.



TREINO

Em lugar da casa,

espaço sob a laje,

no exercício da escuridão,

o estudo da estreiteza:

menos de sete palmos

pouco acima do asfalto.



CEGUEIRA

Seu sol de catadora,

luz encardida nas calçadas,

gira numa galáxia

de papelão e alumínio,


rendendo trocados

para a quentinha

comida fria

sobre a toalha do asfalto,


um sol ocasional

porque nem tudo é caixa,

nem tudo é cerveja

ou suco de coca,

e de repente se apaga

cegando universos.



DESACATO

Não que haja perfume

no podre das comidas

nas latas,


não que seja bela

a carne raquítica

dos homens do asfalto,


não que necessariamente vistam

esses andrajos

de carcomida tez,


não que agradem

sarcófagos de cobertor

abrigando corpos,


não se olha isso

por ser bom moço

ou masoquista.


Acontece que

a realidade não põe tapumes

nas descontruções das ruas.


Ver desacata vontades.



FOZ IMPOSSÍVEL

Ruas como rios na geografia da urbe,

A massa de asfalto como água.

Imitando peixes, bípedes sem rumo.

Sons submersos de sirenes, motores, vozes.


Não há mar que pacífico aceite o despejo.



O carioca Sérgio Bernardo, seguramente, encontra-se situado, na literatura brasileira contemporânea, como um dos que. Jornalista. Poeta. Contista. Premiado no Brasil e no Exterior. Artista múltiplo e loquaz, escreveu "Caverna dos Signos", livro publicado a convite da Secretaria de Cultura de Nova Friburgo (RJ), onde mora. Os versos acima são de seu mais novo trabalho, "Asfalto", onde o Poeta, sem meias-palavras, nos convida a deixar a zona de conforto e ver o que há por trás do que pensam guardar nossos olhos. Contato: sergbernardo@ig.com.br