quinta-feira, 27 de maio de 2010

EDSON BUENO DE CAMARGO


COZINHANDO FEIJÃO

Nunca viu
Sua bisavó
Filha

Cozinhando feijão
Em panela de ferro de três pés
No braseiro que havia
No fundo da casa grande

Se sentes hoje
Compelida a dotes de bruxa
Talvez também deva a ela

Em meio a vapores e fumaça da lenha
Completando a água
Amassando alhos
Assuntando o tempo
Por entre os galhos das jabuticabeiras
Nos benzia o tempo todo
De mau-olhado e de banzo de criança

Minha vó cozia bordados infinitos
Em panos vindos de Santa Catarina
Cabelos brancos revoltos
Óculos na ponta do nariz

A casa na cidade
Nunca foi bem ao seu gosto
Foi adaptando os ares de sítio
Horta, fogão improvisado no quintal
Seus santos em altares espalhados pela casa

Se bem que o que não esqueço
Era seu olhar de descanso
Seu sorriso curto
Quase infantil

Minha vó
Era a madrinha que eu nunca tive


OUVIDOS DE GATO

Minha vó
Com ouvidos de gato
Ouvia toda a casa

Rangidos
Da memória do sol

Eu
Observava aranhas
Tecendo a morte de pequenos insetos
Nos esteios
(a velha casa não tinha forro)

Troncos roliços enegrecidos de fumaça
Fogão de lenha
Fumegando as brasas

As velhas telhas
Abrigavam ninhos e nichos
Me assombravam criaturas invisíveis


GAVETAS DE GUARDADOS

Meninos correndo buliçosos
Nas ruas de pedras inocentes
De corte preciso e exato

Granitos históricos
Caminhos
Muito percorridos

Dentro da casa velha
Paredes brancas e encardidas
O quarto semi escurecido
Teias e picomãs

Gavetas de guardados
Grampos de cabelo enferrujados
Projéteis da revolução
Bulas de remédio
Anotações inconclusas e inúteis


CEMITÉRIO DE VILA VITÓRIA

Brincadeiras infantis
O alto-falante da igreja
Tocava uma canção do Taiguara

Aqui o silêncio
Entre os mármores e os granitos encardidos
Cruzes e anjos sem nariz
Capim brotado em espigas
Gargalhadas e conversas lá fora

O cruzeiro
E velas ardentes
Um cheiro indecifrável

Aquele verão não volta mais
Nem o seguinte

Calor do meio-dia insuportável
Brincadeiras entre os túmulos
Esconde-esconde
Com um certo receio
Um medo escondido sem revelar
(todos tinham, porém ninguém admitia)

Havia a estátua da santa
Que meu amigo jurou que se mexeu
Acompanhava com o rosto quem a fitasse
Até hoje passo ali com arrepios na espinha

O tempo passou
Agora só volto ali por obrigação
Fujo daquele lugar
Tenho medo, agora admito

Temo
Que eu entre para ficar


MEIO ALUADO

Minha avó
Sempre dizia à minha mãe

Este menino é meio aluado
Estranho e taciturno
Parece que fala em outra língua
Nas suas engrolações

Vê coisas em cima do guarda-roupa
Que só ele percebe e sente
Coleciona insetos mortos
E vidros vazios de remédio

O que esperar de meninos estranhos
A não ser que virem poetas


UM VELHO AMIGO

Um velho amigo
Esses das antigas
Me bateu à porta

Portava uns óculos escuros
Cabelos despenteados
E um olhar no vazio

Me falou do presidente
E da crise política nos jornais
(qual crise?
Algum dia não houve uma crise qualquer
Para alguém ganhar algum dinheiro?)

Esse nós elegemos
Tomamos pauladas da polícia
E o carregamos nas costas na praça

E revolução morreu em nós
Estamos um tanto combalidos
Ficamos ansiosos
Assim como nossos sonhos da adolescência

Velhos amigos são momentos perigosos
O tempo da segadora cada vez mais próximo

E tudo o que quero ver hoje
É poesia
E meu neto em seus cueiros



Paulista de Santo André, reside em Mauá a partir do seu segundo dia de vida. Publicou, entre outros, “O Mapa do Abismo e Outros Poemas”, “Poemas do Século Passado”, “Cortinas” e “De Lembranças & Fórmulas Mágicas”. Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê, e publica com freqüência em sites e blogs.

JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA




RESSURREIÇÃO

O amor chegou, sentou-se à farta mesa.
Pensou que ali vivia o seu abraço
porém ouviu palavras ao espaço
- lamentos no vazio da incerteza.

O orgulho sério sempre no pedaço
maior, mais firme e sem qualquer fineza
abriu a porta à sádica esperteza
deixando entrar a glória do fracasso.

A farta angústia enfim, no desencanto,
tocou no amor, pediu a paz, no entanto,
além da paz ganhou um ar de aclive.

E assim as mãos se uniram sob a luz
do amor, pela humildade que seduz
e sendo eterno e terno sobrevive!



CAUSA-EFEITO

I

Quando a fonte
afina com a ponta
a ponte
não desaponta
... e o monte
não perde a monta.

Quando a chama
afina com fanal
a fama
foge ao banal
... e a lama
perpassa ao mal.


II

Quando o monte
afina com banal
a ponte
é o vertical
desmonte
nas pás de cal.

Quando a fama
se enrosca pela conta
a chama
a paz desmonta
... e a lama
ao breu aponta!!



À LÁGRIMA


Quando a esperança acorda um sonho leve
e o som da natureza se aprimora;
penumbras do passado vão embora
e o toque do relógio não se atreve...

Quando o aperto de mão à paz aflora
e a dúvida do amor torna-se breve;
o gelo da pintura vira neve
e o justo com justiça não demora...

Ressurgem as latentes pradarias;
os olhos não se enganam com a fala
e a liberdade enfim mais aparece.

Tertúlias fraternais noites e dias
lapidam o poeta que se exala
e à lágrima fervente desfalece!


AOS QUE PARTIRAM


Os nossos entes queridos
que partiram para o além
jamais serão esquecidos;
nãos nos esquecem também.

Leve pranto de saudade
refrigera o nosso enlace.
Uma brisa nos invade
e a esperança então renasce.

Detenhamos conformismo;
o futuro nos espera.
Ausência não é abismo;
presença não é quimera.

Elevemos para o céu
orações para o conforto.
E quando subir o véu...
é ver: ninguém está morto!!


João Batista Xavier Oliveira nasceu em Presidente Alves-SP-, em 16-06-1947, reside em Bauru-SP desde 1975. Possui trabalhos classificados em diversos concursos no Brasil e um em Portugal.
Veicula o blog http://jobaxaol.blogspot.com

segunda-feira, 17 de maio de 2010

ANDRÉ BIANC


Contra a Corrente
Romper com os paradigmas autoritários
Criando um novo pensamento existencialista,
Para que os modelos medíocres e imaginários
Fiquem restritos apenas aos psicanalistas.
Entender que a loucura é a mais pura razão
E vítima desta roda-viva que tem nos esmagado,
Exigindo-nos a todo instante da cruel competição
Resultados convincentes e por ela manipulados.
Ter a consciência da nossa efêmera passagem
Por esta vida que somos meros coadjuvantes
E quem sabe tentar inserir nesta paisagem?
Nossa figura na breve posteridade entediante.
Romper com os paradigmas autoritários
Criando um novo pensamento existencialista,
Conquistando cada canto do tempo perdulário
Mesmo que toda retrógada corrente resista.


Miséria
Voaram meus pensamentos ousados
Com as asas da noite vã e estérea
Pelos vales psíquicos famigerados
Desprendidos da humana matéria.
Inda que mesmo ora involuntários
Sucumbem numa compulsiva febre
Em cada canto dos fatais imaginários
E com todo o coletivo que se quebre.
E terão eles a anunciada liberdade ?
Como o animal do primitivo instinto
Entre as lutas da ilusão e da verdade
E nas ações que represento e sinto.
Voaram meus pensamentos cansados
Secou todo o sangue na frágil artéria
Vamos morrer de certo enganados
E sepultados em nossa própria miséria.


Canção Confusa
Sou o acontecimento adiado
Em tantos enigmas vazios
A face no espelho entediado
Por detrás de espíritos vazios.
Sinto a dor do choque real
E do inconformismo moderno
Flores bóiam em águas de sal
Pelas ondas do amargo eterno.
Ouço o meu poema imaginário
Sendo declamado pelos mortos
Figurantes de um velho cenário
Em atos, falas e roteiros remotos.
Ah ! cidade minha dos ausentes
Das letras que tecem finas malhas
Em cada fio do meu inconsciente
E nos frios cortes das navalhas.
E fica o poeta e o seu ócio dilema
Delirando em sua pseudo-arte
Sem saber que é extrema
A ingênua iria que em teu peito arde.
Morre o homem , o pífio anti-herói
Coadjuvante desta confusa história
Terás apenas a ferrugem que corrói
As lembranças de sua vã trajetória.



Inalcançável Amanhecer
Desigualdades incompatíveis
Obviedades longas por viver
Em todas as partes invisíveis
Um novo corpo apodrecer.
Com tantas palavras não ditas
E amores jamais finalizados
Apesar das promessas malditas
Dos velhos Deuses decapitados.
Ignoremos então a nossa morte
Certeza única e alentadora
Muito mais que azar ou sorte
A vida numa trilha desoladora.
Por fim restarão todos os pecados
Daqueles sem o menor perdão
Cometeremos os mais variados
Sem tempo para uma só reflexão.
Desigualdades incompatíveis
Obviedades longas por viver
Muito além da racionalidade
E do inalcançável amanhecer.


Adagio n° 19
(Ao Arka Hare )

Descansar as palavras na boca
Regurgitando os sonhos futuros,
Em quadros , miragem tão louca
Expostos em penhascos obscuros.
Evocar a luz em plena escuridão
Pisando nos degraus da insanidade,
Chamar os inimigos em mutirão
A declamar poesias pela cidade.
Ao final, habitar em ti , cemitério ...
Para decompor o sombrio passado
E sepultar vivo esse frágil mistério
Em covas de perdão e pecado.
Descansar as palavras na boca
Regurgitando os sonhos futuros,
Concluir que a vida é tão pouca
Pichando os sonhos nos muros.


Direções
Veja por onde andava
Rastro de pensamento,
De tudo, nada bastava
O existir do momento.
Do tempo, eu aliciava
As horas tão inocentes
E logo a noite acabava
Em espelhos dementes.
E aqui, aonde cheguei !
Dentro de mim calabouço,
Jamais saberei o que sei
Sequer num leve esboço.



Canção do Amanhã
Exilado no tempo e na distancia
Sobrevivendo em lapsos improvisos
Sem uma linha reta ou constância
E perdido pelos caminhos indecisos.
Enfrentar a morte certa, corajoso
Entender o efêmero de tudo sempre
Deleitar-me do momento em profuso gozo
Impedindo que a mediocridade adentre.
Restabelecer então os descuidados dias
E a essência perdida da lasciva alvorada
Sem que as horas raras fiquem vazias
E nem a humana loucura questionada.
E por fim, desfilar com a fina mortalha
Pelos prometidos espaços umbrais
Abraçado com a derrota desta insana batalha
Até que tudo silencie e fique em paz.



André Bianc, nascido a 17 de junho de 1957, na cidade do Rio de Janeiro, formado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou de diversos movimentos poéticos, é o idealizador e organizados do Concurso de Poesias Poetas do Vale em Taubaté, ( já na 8ª edição), um dos fundadores da Confraria do Coreto (www.confrariadocoreto.no.comunidades.net) , que apresenta semanalmente o Sarau das Sextas.

VALÉRIA VICTORINO VALLE


FLAGELO


Na Ditadura do corpo
Há uma tropa esquelética a caminho
A fim de apagar partes de nós mesmos
É a troca do natural pelo superficial
É a troça dos irresponsáveis fascinados por monstruosidades

Impera o plastificar, o siliconizar dos seres humanos
Modelo de beleza impregnado, fabricado com código de barra
Prevalece o discurso distorcido no imaginário da população
Bizarrices poderosas vencem o bom senso

E na implicância com o que ou quem Somos
Acham belo o feio, fanatismo da indústria,
São os olhos para fora e a cegueira para dentro
Exigem padrões de forma ideal (ou irreal)
É a intolerância ao incomum, às diferenças naturais

E no açougue das identidades (já não basta a mente)
Sofremos intervenções estéticas e de caráter doentio
Aceitamos a insanidade da vigilância e da artificialidade corporal
Agimos na inflexibilidade imposta pelos tops de beleza
Andrógenos vestidos de padrão flagelam-se...

E na patologia da descaracterização
Da desindividualização e da perda identitária
O espelho reflete e refrata a escravidão
Aniquila a ardência de ser livre.



SORRIR SÓ

Nos meus lábios um poema
Um sorriso de Sol
Numa reticência exigente e louca
Da gostosa fragrância da sua saliva
Sabores paradoxais
Meu corpo é teu por desejo
Não há como fugir dos seus enigmas
É o tencionar do amor e da posse
Artimanhas do sofrer
Arrepio lento e quente

No beijo épico
O amargo gosto do gostar
Num suave sorriso de resignação
Ao empreender a travessia
No amanhã incerto e vazio
O sobreviver a uma guerra de amor
Para apenas morrer de solidão
Para presentear o outro com a solidão
Solidão a dois
Sofrida Solidão Sentida
Cada ser com sua eterna solidão
Havia um sorriso solitário
No sorriso de ser sempre só.


CIÚME

Na prisão das relações reside o demônio do ciúme
Monstro escondido em cada um de nós
Tormento incessante, atitude opressora do vigiar.
No meu medo disfarçado em amor
Vacilo entre aliviar ou alimentar o mal estar da dúvida.
Sinto que o meu amor cega e o meu ciúme vê coisas inexistentes
E no meio termo entre paixão e ódio desse padecer infernal
Ultrapasso a esfera da dúvida e da insegurança.
Esse assassino do amor emerge
Desgastante, dominador, corrosivo
Destrói a minha débil ordem e o meu frágil equilíbrio
E nessa irracionalidade
Consumido e ensandecido pelo ciúme
Sinto um delírio sufocante...
Desejo extirpar a perda do objeto amado
É o afiar do mesmo mecanismo de controle
É a dilaceração pela eterna posse
Minutos latejantes e insuportáveis.

PRECISA-SE DE LOUCOS

No paradoxo da insânia e da razão
Chega de viver nas sombras da sanidade
Basta de esgueirar-se no anonimato
Agora é Ser o louco da vez
E não resistir a loucura que arrebata:
Precisa-se de Loucos

Pelado e sujo de sangue
Vejo a invencível contradição: lucidez e insanidade
Aparente decrepitude que não tem prevenção
Só tem impulsão sob a proteção da sensatez
E nessa combinação alquímica
O anormal intriga, implode em câmera lenta,
No único lugar em comum:
O hospício infindável do sem lugar, do nenhum lugar


Cabe aos loucos salvar os lúcidos
Privar do sanatório da normalidade
Loucura doentia que escraviza e esvazia
Julgar e esquecer que é julgado
Reprimir o vazio que gera a doença da alma
Encontrar sua definição de loucura já não basta
Enlouquecer o Outro é capturar a sanidade.


ERROS

Nas centenas de vozes e de vezes
Das guerras marcadas na alma
Sinto a mesma tristeza que paralisa
É a dura rotina de privações
Nos antigos apetrechos da angústia
O silêncio do mesmo preparo de amar.

Num tempo qualquer
Exumado de mim mesmo
Lembro-me dos beijos que mortificam
Assombro diante do encantamento
E apenas um beijo aguarda o desfecho
Na peregrinação dos sentimentos
Estoque inesgotável de fantasia.

No ser que repousa no Nada
Bóiam dores na passagem deixada no corpo
Maldita dor do amor e do desamor
No meu lugar cativo: Solidão
E sem nenhuma garantia do amanhã
Vivo a maquiar um não esquecer
Escondido na lascívia.

Com olhos emprestados pelos débeis
Alimento um amor fragmentado em tentos
Um amar de pouco tempero
Facilito o seu corpo e complico a minha alma
Pois nem tudo que é permitido é cumprido
E nem todos os erros são para aprender.


AVESSO

Na frágil teia da vida
Um amor escolhe um outro
Libera motivos e nos deixa cativos
Fascinantemente débeis
Restam sobras e migalhas do passado
Um gosto de amor em transparência
Que faz coisas inusitadas, esquisitas e idiotas

No paradoxo desejo e indecisão
Nos seus lábios eu me devoro
Inexplicável, ininteligível e mágico
O mais breve dos encantos
Desenho você em palavras
Escritas com cristais brilhantes do seu olhar
Olhos de topázio: duros e claros

Numa sinfonia de suspiros
Respiro o adorar pelo avesso
Uma vontade de morar dentro do outro
Desejo e Sou
Amante da paixão intrigante
Lágrima de irrigar o prazer
Dor para lapidar o viver.



Goiana de Anápolis, é autora de RETRATO 4x4: A POESIA SALTITANTE, A VIAGEM e DIÁLOGOS. Contato: vvvalle@hotmail.com / vvvalle@gmail.com / www.valeriavalle.blogspot.com

segunda-feira, 10 de maio de 2010

DÉBORA RIBEIRO


O ERRO (parte II)

O erro é meu também.
Essa casca humana sujeita à destruição.
Compreendo o que sou porque erro.
Compreendo o choro dos que choram.
Queria dar-lhes consolo,
Mas sou eu quem lhes fere a carne.
Edificar a vida...
Como imaginei no princípio;
A vida é para ser boa,
Não é para ser estragada
Com pequenas misérias e condenações.
E, no entanto,
Mil cairão ao teu lado
E dez mil à tua direita.
Eu sentirei todas as dores.
A despeito de tudo
Permanece a ordem: edificar a vida.
Eu, que provoco a destruição:
Eu-erro,
Eu-queda.
As mulheres e crianças choram;
É por minha causa que choram.
Ah! Essa condição humana!
Desespero de mim,
Perdoa-me.



TALVEZ SER

Um ser quase morto pelo seu não ser
Um ser ou não ser
Ou não sei
Ou não penso logo não existo
Não nunca


Um ser na fronteira do abismo
Entre não existe ainda e não existe mais
Não existirá jamais
Talvez é o grande medo
Não existirá
Mas existirá talvez


Um ser está aí e espera
Porque o não ainda
Da existência em semente
É mentira ou não ou sim
E quase explode em poder que não se expande e morre
Porque não ainda
E talvez não jamais
Mas talvez ser



MECANISMO

O certo
O absolutamente certo
O hermético
O matemático
Pequenos compartimentos de acerto
Cada certo em seu lugar
Monótona harmonia
Monótona até à morte
Mas uma dissonância: o amor, ah!
Maravilhosa dissonância...
E redime tudo!



TOTEM

O homem estabelece a si mesmo como padrão.
Devasta,
Devasta,
Devasta,
E reconstrói tudo
À sua imagem e semelhança.
O homem se olhou no espelho
E depois olhou para o mundo,
E viu o homem tudo quanto havia criado,
E eis que era muito bom.
Mas é claro que ele não consultou
Uma segunda opinião
E ainda tapou os ouvidos
Por precaução.



TESTAMENTO

Deixo-te minhas cadeias
Não por gosto
Apenas é que não tenho os campos
Nem as águas para teu descanso
Tenho só esse deserto e seus espinhos
Que te deixo de herança

Queria deixar-te os frutos
Para teu deleite
E dos teus pequeninos
Os campos para tua alegria
De vê-los correndo e rindo
Queria deixar-te a força e o gozo
Um lindo jardim para cultivares com teu amor

Mas eu te deixo
Essas paredes estreitas e o meu medo
Essa terra seca de não saber amar
Um jardim devastado
Não tens culpa

Talvez eu não tenha roubado de ti a coragem
Talvez sejas forte
E conquistes os campos
E um jardim floresça pelo teu amor
Talvez alcances para teus filhos o que apenas
Desejei para ti

Bem sei
A herança que te deixo é parca
Se fracassares (tente outras vezes)
Estás livre de toda culpa



CIDADE (Campos do Jordão)

Cidade das minhas lutas.
Aqui encontrei as folhas secas do outono
Sobre as quais deveria pisar
Enquanto calcava os pés sobre minhas próprias chagas
Até torná-las rijas,
Até calar toda dor e toda queixa.
Aqui percorri caminhos,
Subis os montes descampados
De onde uma vez bradei: bendito
O Criador de toda a Terra!
Aqui conquistei as calçadas desertas nos meses
Da cidade silenciosa,
O solo feito sagrado pela minha solidão.
Benditos os dias cinzentos da cidade.
Bendito o solo pedregoso e úmido.
Benditas as folhas que caem.

Por onde estive todo esse tempo?
Estive contemplando o cinza intenso e grave
Sobre as árvores escuras.
Algumas vezes vi um último raio de sol
Sobre o verde iluminado,
Beleza que me foi dada nos arredores da cidade.
As dádivas das nuances do céu,
Todas elas se derramaram sobre mim.
Aqui, tantas guerras silenciosas me fizeram
Débora.

Olho o relógio da praça sob o céu azul e o ar ameno,
15:50h.
Muitas vezes na cidade eu temi o futuro
Mas agora digo: a vida!
Muitas vezes fui levada para o meio da multidão
Para ser vendida aos valores dos homens.
Tantas vezes sucumbi sob o jugo das verdades
De longe
Nesse mesmo palco da cidade empobrecida:
Comprar e vender.
Olhos baixos sobre o dinheiro,
O mercado das almas.

Mas hoje, enquanto todos repousam,
A mim me foi dada a luta.
As forças do céu se reúnem,
Todas as nuances do céu,
Em meu socorro.
As silhuetas das montanhas me fortalecem,
Todas as árvores, todas as flores.
Trago na memória as alegrias da cidade.
Aqui a beleza se oferece à vida,
Eu me alimento da beleza
E ofereço meus lábios para dizer: a vida!



Paraibana de João Pessoa, radicada em Campos do Jordão, autora de “Minhas Impressões”.

terça-feira, 4 de maio de 2010

LARI FRANCESCHETTO


Elegia II

No meio da praça, ao meio-dia
Alguém triste.
No meio da rua, à meia-noite
Alguém triste.
No meio do quintal, roupa no varal,
Alguém triste
E, todos à procura de um Deus
Que não existe
Porque de tão imenso
Anula-se.
Em todo lugar
A qualquer hora
Essa coisa triste, mais triste
De sermos tão pequenos
De não vê-lo tão perto.

Mas Deus nos move
E nos amanhece.


Carpe Diem

Andaime a andaime
Tijolo a tijolo
Passo a passo
Massa a massa
Construo a casa
Da minha história.

O amanhã é depois;
Eu sou agora,
A vida me convoca
E não demora.

Tudo o que busco
E não me basta
Agendo para agora.

Mergulhado em alma
Aproveito o dia
Que o vento sopra,
A vida passa.


Mutação

Eu era onda
Na praia deserta,
Agora sou marcas na areia
Que as águas apagam.

Eu era ânsia
De quem tem sede
De pegar o trem que passa,
Agora sou mágoa
De saber que o trem
Não volta.

Eu era céu
Que o mar abraça,
Agora sou réu
Por ser de areia.

Meu consolo
O mar sabe:
O sal das águas
As mãos que sangram
Sara.


Porto Alegre

Porto manso
Tenro amor
Desde o primeiro
Instante das águas.
Porto Alegre, se alegra
Em ti meu corpo,
Âncora única
Nesse porto meu.

Só meu, só solidão,
Amada busca só
Amada fuga
E a brusca tentativa
De começar tudo de novo.

Porto Alegre é rima única,
Quero-te por inteira,
Amada selva!


Arroz na Tarde

Vieste caminhando
Mas nem precisavas das pernas
Porque eu sei
O que tu tinhas.
Tinhas o que não tenho
Mas tenho o que me atrevo.
Vieste me sonhar
De que eu poderia
Ter o que não tenho
Mas tu sabes
Do que estou falando
Embora não me entendas
Mas me entendas...
Eu posso a metáfora
De voar sem ter asas
Porque só tenho pernas
Mais o desejo intenso
Que me entendas...


Lição

Acostumei-me
Conjugar vento e sangue
Viajando o mapa.
O primeiro é selo
Com o qual registro o medo;
O segundo é roda
Movendo a carne di sopro
-Razão dos olhos úmidos.
Acostumei-me contigo
Equação da ponte ao abrigo,
Desaprendi a fugir do rio.


Assalto

Drummond me conduziu
Da pedra à pedra
(só o rosto dele).
Roteiro azul
No corpo ferido,
O pano físico
Cobrindo o querer-se.
Sem alarme no assalto
Quero mais é abismo
Incendiando motivos.


Quintanares

O pão para a fome
(a outra fome)
Nasceu de lua in(esperada),
Da solidão nas esquinas,
De um felino varanda
Nasceu de lâmina cálida
Como, sempre, foi acesa
No hotel Majestic, a madrugada.
Dessa matéria in(visível)
De silêncio que não cala
De sapato velho de criança,
De frágeis flores
Entre sal e pedras,
De um copo d’água, às pressas,
Na Selva, às seis da tarde
São teus filhos, sempre, aurora
No espelho das águas do Guaíba
E o por-do-sol, do mesmo rio,
O fogo das pa(lavras).
E se Alegrete é um trem
Que ficou na curva da estrada
Agora somos nós, Quintana,
Que tomamos chá com teus fantasmas.

Há um louva-a-deus
No parapeito da janela,
Indisfarçavelmente verde.

É preciso ver
Com os olhos da alma
E ter fome sempre!


Gaúcho de Veranópolis, é autor de Espelho das Águas.

MAURO VALLE


LI

Era girassóis o arroio
E as ovelhas sombras
Voltavam de tão antigas
Campinas
Mundo céu
Solidões erguidas
Por tudo o que é asa e faísca
Quando o menino
Crepúsculo
No porto de meu peito
Se tornou
Meu calabouço
Ave natureza
Consumida de branco
O luar brotava
Do arvoredo


XLII

Amar os homens
Buscar a pátria do que não cremos
Que teares somos?
Que solidões sem nome?
Pobres pastores de moinhos
Se morremos
Por raízes que não vemos
Tristes passageiros
Do chão sereno
Que nos acolhe
E nos tornamos
Passarinhos

Maldito livro que me coroa de angústias


XXXVI

Os rios de teus cabelos
Anoitecem minhas mãos
Ardo a paz de existires
Assim como as noites ferem
Como edifícios que ladram
Dentro e fora de meu peito
Entre as guerrilhas inúteis
Que me cobrem de insônia
Que paradoxos carrego
Quando ouço o oriente
De tuas lentas planuras
Vejo em teu centro essas sombras
Essas miragens que cegam
Ah sagração que me perde
Não posso te dar quem sou
Tantos mundos em meu peito
Vertem causas malogradas
Que fizeram de mim, serena?
Arrancaram o meu nome
O hino de meus olhos tristes
Que hoje postos em ti
Cantam todos os exílios
Não sofreste o que morri
Quando professei a vida
Por amor do que existe
E me comove nos seres
O rio de me chamares
Vicio, raiva, cavalgares
Que sou para que me esperes
Qual senhor, o passageiro
De teus anos derradeiros?
A mensagem de me amares
Dorme à flor da serrania
As palavras que te olham
Minha voz de cimitarras
Vozes nômades do dia


XXVIII

Garças de Tremembé
Clareai a minha hora
Ó arrozais erguidos
Na solidão da planície
Tecei para mim
Portas de vento e verdes
Um riso que seja o rio
Da serrania de meu coração

Vinde, meus irmãos
Ouvir as alvoradas
Que os homens não quiseram entender
Eles enganam, matam, corrupiam
À luz da salmodia
Cifrão

Garças de Tremembé
Irmãs da inocência
Que às vezes perdi
Quem sou senão esquecimento?
Que sois senão as asas que me restam?
Vosso vôo em branco
Antigo chamamento
Agora é meu ser amanhecendo


VII

Quando o olhar desta morada
Pousou em minha face
Eram cravos os caminhos
Que levavam ao outeiro
E música o atalho
Que me trazia ao limiar da noite
E me olhando longe
Me acenou esta morada
Com seus beirais de pinho
Com as empenas fulvas de repente
E me saudou demorosa
Com as hortênsias curvadas sobre as leiras
Onde doía-lhe o júbilo das cores
E, parecendo dizer, já por trás da nevoa
Numa braçada de vento
Que triste era a sua paisagem sem mim
Logo recolheu a sua mágoa
E deixou o luar cobrir-lhe
As mãos serenas
Um renque de açucenas
Quando viu buscarem-me os aprendizes
No centro da capoeira
E o galo cantou em seu cercado de verbenas
Quando já nos recebia o Oriente


XXV

A casa que me coube por inverno
Fica ao pó do outeiro
Estar em seu recinto
É como encontrar o dia
Na voz dos seres mais serenos
E o sol das paragens mais amenas
A casa que me coube por inverno
Ergueu-se no vão de cem jornadas
Por negros forros do lugar
E pelo mais brando alarife
Que o Montemor foi contratar
Numa vertente do Pinhal
A casa do inverno vindo
As janelas de par em par
Para a banda cismarenta dos cedros
A casa tão próxima
Deste outro fado raiar
E tão longe do chão
Que me vai recolher?
A casa ao pé do outeiro
A varanda era manhã
Seu guardião o serenar
A casa do muro circular
A porta alguém abriu devagar
A porta noturna, a face da morte a fitar



Autor dos livros Diodiá-Vertente Serrania, Salmos Proscritos, Marédia e Cantos do Arco da Serrania (sob o pseudônimo de Terêncio de Évora) –entre outros.