terça-feira, 23 de novembro de 2010

JOSÉ CARLOS MENDES BRANDÃO


O EMPAREDADO


Eu sempre calado

entre estranhos dobres.

Eis-me limitado

por estanho e cobre.

Eis-me emparedado

no meu quarto pobre.

Ainda mais me calo,

por mais que me dobres.

Sempre o mesmo avaro,

por mais que me cobres.

Parco de palavras

e outros marcos úteis.

Nessas minhas lavras,

sempre mais inúteis.

Memórias escravas,

minhas cobras fúteis.

Meus anjos de lavas,

trevas, barros súteis.

Eis-me em lande escassa:

longe, as formas dúcteis.

Esse o meu destino.

Moldar a estrutura

de encruados mitos.

Na pedra mais dura

forjar um estilo

de vaga ventura.

Nesta arte prossigo,

hera de ternura.

Neste brando rito,

palavra mais pura.

Do quarto as paredes

a pele do corpo.

Isolam as sedes

deste vário horto,

lançadas as redes

onde tudo é morto.

Onde eram as lendas

é um olho torto.

Por que se desvendem

as vozes do orco.

E o que era talvez

um menino antigo

finda-se de vez.

Desse mito findo

o muro de peze

íntimo granito.

Dessa viuvez

no verbo falido.

– Um poema não lês,

não se lê o olvido.


A PALAVRA E A TERRA


O poeta escreve com estrelas, pedras e pássaros.

Escrever é um testemunho da alegria.

Eu sigo arando a terra com a palavra.

Venho dos lençóis de flores, que são palavras e me vestem.

Tomo da palavra como uma chave mágica.

A casa da poesia é a única morada de Deus.

O rio engole a palavra e espera o êxtase

Da rosa ao se mirar em suas águas.

Semente na língua torna belo o canto.

Palavra é como erva se alastrando, cobrindo tudo.

A flor sabe a palavra do êxtase.

A palavra tem raiz dentro da terra.

Na harpa da palavra, com os dedos em chamas,

Vou tangendo o universo.

O poeta vive à beira do abismo e do êxtase.

O pólen da beleza desenha a vida.


OS OLHOS DA MINHA MÃE


Nasce uma flor nos chifres da vaca,

Uma fonte de leite puro muge no pasto.

O orvalho da aurora me purifica.

Brotam da memória um bezerro e um touro

Voando sobre as árvores da infância.

Onde o cavalo do meu pai?

Onde o grito retumbando como o trovão?

Os centauros celestes fazem chover

Pétalas do delírio e borboletas azuis.

Um peixe curioso espia das locas na água verde

Do ribeirão correndo no fundo do pomar.

O eterno dorme ao meu lado como um cão.

Minha mãe chega à porta com pássaros nos ombros

E me mostra a face de Deus nos olhos.


CLARIDADE


O hibisco vermelho apaixona-se pelo sol,

Abre-se mais, explode, parte-se.

As folhas verdes guardam a luz e a sombra.

A borboleta aprisiona a cor nas asas abertas.

A libélula equilibra-se no caniço.

O limo recobre a pedra por onde a água escorre,

A água cristalizada ao cair das pedras da cascata.

A garça caminha com leveza no capinzal.

O pica-pau martela o tronco do pinheiro.

O beija-flor carrega a luz nas asas em delírio.

A coruja vigia a sua toca com os olhos acesos.

As palmeiras espelham-se nas águas do rio.

O monjolo sobe e desce, a roda d’água cantarola.

O melro canta à beira d’água a claridade do verão.


O TEMPO ESCORRE DOS CABELOS

O tempo não existe para o meu avô.
Chega um tempo em que não é mais o tempo
de preparar a terra, calcular a lua, a chuva, plantar e colher.
Chega um tempo em que o homem é a colheita.

O meu avô olha o horizonte, resmunga: ara!
Chega um tempo em que não somos do tempo.
O cachorro do eterno ronronando, mordendo
o calcanhar. E somos cavalos trôpegos, inúteis.

O tempo escorre dos cabelos do meu avô
que morreu com noventa e dois anos de idade
depois de muitos relógios quebrados.

Um minuto basta para acariciar o cachorro
ou para morrer e continuar no tempo,
a mão no pelo do cachorro, na morte prolongando a vida.



O POMAR DO DIA


As maritacas trincam o céu das frutas maduras,

O ouro escorre da árvore.

Olhar uma árvore é multiplicar o olhar,

O prisma das folhas me entrega o universo.

Os gerânios vermelhos entre o musgo verde,

Os cravos rosados na água brilhante do jarro.

Na forja da tarde, o martelo da araponga.

As pitangas são gotas de sangue.

A romã explode, as sementes são diamantes.

Uma cigarra quebra as vidraças da tarde.

Um melro voa de um galho de cedro.

Cálices de flores gritam no alto dos ipês,

Pássaros pingam mel.

A vida é perfeita no pomar do dia.


EQUILÍBRIO


Colore a manhã a seda simples da brisa.

Uma garça valsa na margem do rio,

O sol doura a água.

Venha beijar comigo o orvalho dos nenúfares.


O tuiuiú se levanta da água

Com um peixe de ouro no bico.

A pena da paisagem era de ouro e prata,

Cada vez mais florida a plumagem do dia.


As taboas deixavam cair os pendões

Em reverência ao azul do céu e da água.

Uma borboleta saltita no ar


Entre as florinhas amarelas.

Um flamingo equilibra

A perna fina do silêncio.




José Carlos Mendes Brandão nasceu em Dois Córregos, SP, em 28 de janeiro de 1947, e hoje vive em Bauru, SP. Publicou O Emparedado, Exílio, Presença da Morte, Memória da Terra, Poemas de Amor e O Silêncio de Deus. Ganhou os prêmios “Estadual de Literatura” (GB), “José Ermírio de Moraes”, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro de poesia do ano, V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, Brasília de Literatura, Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte” (2000, por um romance inédito, e 2002, por um livro de poesia também inédito). Tive a indizível alegria de ser seu aluno, no distante ano de 1984, no Escolástica Rosa, em Santos. Para conhecer mais da obra de Brandão, visite http://poesiacronica.blogspot.com/

terça-feira, 21 de setembro de 2010

CLEBERTON SANTOS


POÉTICA DO CARURU
para Luísa Mahin Nascimento

No chão comemos o caruru dos 7 poetas
Entre versos e tachos e sinestesias e bacias

Os poetas revivem a festa das matas africanas
De seus lábios ecoam os ritmos ancestrais

Rodam no terreiro cavalos da poesia
A palavra sibila no atabaque do malungo

Todos cantam na força da magia
7 poetas comem caruru recitando euforias

Do livro inédito “Cantares de Roda”.
Feira de Santana, 19-09-2010.



ROSEIRAL

para Rosana Maria Carneiro Rios

Teu corpo é roseiral que exala fogo,
lambendo e devorando meus desejos.
Teus róseos espinhos são mil lampejos
que rasgam meus gritos de desafogo.

Teu roseiral, campo de mil prazeres,
vermelha fonte de insaciável gozo,
arde sobre meu peito. E fogoso
canto salmos de orgia, por trazeres

para meus braços, ó lúdica ninfa,
a rosa mais rosa, do roseiral
secreto que trazias dentro de ti.

Do livro inédito “Aromas de Fêmea”.


LUZ DA PAIXÃO

Amanhecer em teus braços,
pleno do gozo de uma noite
escura, sentir meu corpo
claro sempre à tua procura.

Amanhecer em teus braços,
insaciado dos teus olhos,
buscar novamente teus
abraços, luz da paixão.

Amanhecer em teus braços,
recitando mil suspiros,
canções de ternura viva
em formas várias de amar.

Do livro inédito “Aromas de Fêmea”.


CANÇÃO DA AMIGA

(ao som de flauta doce)

Em teus lábios, amiga,
repousam sonhos disfarçados de euforia.

Em teus olhos, amiga,
naufragam poemas rupestres de dores oníricas.

Em teu corpo, amiga,
florescem lírios roxos em mar de volúpia.

Do livro inédito “Aromas de Fêmea”.


BESTIÁRIO INÚTIL


Primeira paisagem

Um calango espreita a vida

no mormaço de uma tarde estreita.

Sol a castigar o dorso de uma catenga

viúva silenciosa de outro calango morto.

Esticado em terra seca e astrosa

poeta repousa ossos e remorsos.


Segunda paisagem

De cima de um muro

um calango vigia o mundo.

Imperioso e astuto e lépido

contempla a paisagem (surda)

ausculta os pensamentos de um cético.

De cima de um muro

um calango vigia o cego.

Viril e verossímil e audaz

afronta a morte que ronda

seu dorso listrado de couro tenaz.


Concerto para ninar calangos

Silêncio tecido de dor e violinos

crava em meu peito

concerto estapafúrdio

para ninar calangos opalinos.



Sergipano de Propriá, Cléberton é poeta, crítico literário e Professor da Universidade Federal de Feira de Santana (BA). Detentor de inúmeros prêmios nacionais de Literatura, publicou os livros Ópera Urbana e Lucidez Silenciosa -entre outros. Veicula o blog http://clebertonsantos.blogspot.com

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

VALDIR ALVARENGA


POEMA PARA IRENE

Meu mar
Meu céu
Minha montanha...
Dádiva dos deuses
A mim concedida
Para amar-te
e
Ser a sombra
Q te acompanha

***


Meu amor é vingança

É dança que envolve

Revólver que não atira

Mentira que brilha

É brilho sem luz.

A vingança é meu amor

Avança como onda

última do mar

Meu amor é vingança

Um amor sem amar.


***

AUSÊNCIA


Teu rosto que não vejo

é a morte de meu desejo
Tua face que não miro
é o abismo em que me atiro
Tua voz que não escuto
é em meu coração um luto
Tua presença que se desvanece
é uma inútil prece.



DO TERCEIRO ANDAR
( na rua Visconde de Faria )


... espio a rua
e ninguém passa...
(é só neblina, é só fumaça)
Colho
o brilho frio da lua
e me recolho.
Dentro de mim
fecho a vidraça.


IMAGEM ALGUMA


Perdido na mais ausente distância

Espelhoque não reflete imagem alguma

Alga marinha no meio do oceano

Oculto embora pressentido

Vento sem canto, mudo,

Eu estrela pálida e fria

Colho o vazio

Do nada que plantei.

Destino ou sina?

Nunca saberei...

Cansado estou

da viagem

que não viajei.


SEM MISTÉRIO


lá onde os vivos não falam
e o medo anda só
todas as sombras se igualam
a vida se desfaz em pó.
ossos ajuntados
sem memória , sem testemunho
gargantas ganham um nó
que custará a desatar.
lá onde a vida se fecha
sem mais nenhuma cerimônia
sem mistério
sem dó.


QUEBRANTO


Olho seca-telha,

seca-pimenteira,

olho gordo,

olho grande,

olho grosso,

olho mata-pinto,

olho ruim,

mau olhado,

traz feitiço ,

faz fascínio"

Benza-os Deus,

olhos não são maus

"Colhida a fruta,

a árvore apodrece

guiné dá alarme,

aguça o cheiro,

Contra ti

haja oração ,

patuá, amuleto,

talismã, escapulário,

carântula,meia -luafiga...

Isola !

Pé de pato, mangalô três vezes

"Não te receio! Tenho jesus cristinho

no coração"

Valdir Alvarenga
Poeta santista, autor de três livros: Plenilúnio, Pequeno Marginal e Autógrafo. Co-editor da revista literária Mirante além de animador cultural

terça-feira, 17 de agosto de 2010

JOÃO CARREÑO



DESEJO-PARADOXO


Um anjo que me ensine a voar,
como faço em meus sonhos.

Um anjo que me mostre o brilho,
que procuro em seus olhos.

Um anjo que me ensine a amar,
como leio nos poemas de longe.

Um anjo que não chore,
como fazem os poetas em silêncio.

Um anjo nem bom nem mal

que goste de Bach e Tartini,

de Victor Hugo e Nietzsche.

Que goste de mim e de si mesmo.

Um anjo que não sofra, como os poetas e os demônios.
Um anjo só meu, com tantos erros que eu possa amá-lo.

Um anjo com tantos pecados

que me faça feliz.

Um anjo que dissimule a dor sentida

e torne insólito prazer.

Um anjo que não tema
o doce prazer de mergulhar em paixão.
Pois o deleite de viver o sentimento
Compensa a dor desta batalha.

Quero um anjo, um anjo só meu...


O PIERROT

Por traz das cores do crepúsculo a melancolia é cinza e os sonhos se dissipam antes de alcançarem a primeira estrela.
Por que viver uma existência falsa? A chuva do anoitecer não traz a esperança do orvalho.
As gotas de chuva são lágrimas de gelo na mente de um poeta louco de solidão.
Carrossel de sonhos, numa noite de pesadelos infindáveis as asas do anjo negro batem, cortando o vento gélido da indiferença.
Seu castelo de ilusões é cercado por esperança. Insegurança de uma alma frágil.
Como a aurora inconstante, anjos visitam-no em sonho. Espantando seus demônios.
O Menestrel caído já não tem mais a nobreza de outrora. Agora mendiga restos de piedade e compaixão para alimentar sua alma faminta de afeto. O brilho ofuscante de sua alma agora é pálido, incerto e inconstante. O calor em suas veias já não mais aquece seu corpo físico. Seu olhar distante observa o etéreo cada vez mais próximo.
Agora não é nada além de uma marionete de lamúrias, tristezas e melancolias. Não há mais felicidade, não há mais concubina. A solidão devora todas as cores em suas memórias, silencia a melodia de sua alma e exorciza a esperança de seu peito. Fica apenas o vazio. O nada envolto em amargura.
Ao adormecer, sua alma procura as estrelas através da neve da madrugada. Uma pergunta sobe aos céus como uma prece. “Quando o sofrimento cessará?”

Mais uma última vez a luz volta a seus olhos, a música renasce em seu peito e suas veias se aquecem como num alvorecer de primavera. O cheiro de rosas inebria sua mente como o mais doce vinho.
Seu castelo se ilumina e sua princesa o espera na mais bela torre. O Menestrel se ergue mais uma vez e se eleva com suas asas de arcanjo.
Um último vôo, sem lágrimas ou medos, até sua concubina. Na mais gélida madrugada.


ANTÍTESE ESSENCIAL

Desejo com todas as minhas forças adormecer, transcender mais uma vez.
Fugindo da insônia habitual, que me obriga a sorver do cálice de realidade.

Estilhaços de um espelho quebrado refletem feixes de esperança.
Através dos vitrais o futuro em cores vivas transfigurando a realidade mais uma vez.

No sonho gélido de inverno, nuvens negras dançam no céu triste.
E lembranças se espalham como anjos.
Asas negras e alvas em contraste.

Memórias azuis de esperança dançam sobre o cinza pálido. Dando-me forças para olhar em teus olhos tristes
Mesmo sem ver tua alma, não me sinto só. Uma vez que tenho meus sonhos.

Paradoxo onírico
Amar-te sem conhecer-te.
Ter-te sem conhecer-te.
Amar-te sem ter-te.

A beleza simples da alma, através da névoa dos cegos de espírito, torna-se

Pecado existencial insólito.

A realidade é banhada por indiferença.
Ignorância torna-se sabedoria. Na qual tolos se banham como em um rio de lágrimas e ira.

Não há lagrimas neste mundo
Que limpem o passado,
Eternizem o presente.
Nem moldem o futuro.

Não há ira neste mundo
Que mude uma alma.
Corrija um deslize.
Ou modifique uma existência.

Mesmo que gélidos, tenho meus sonhos.
Meus anjos com a esperança.
E sei que além do inverno melancólico
Ainda brilha a luz da aurora de perfeição.


QUARTA AUMENTADA


Nesta euforia, as cordas em tristeza silenciaram.

Eu calado contemplava as luzes aleatórias.

E sobre a água, a névoa, e além da névoa?

E além de mim? Além do som? Além de sentir?

O silêncio cadenciado em medo e angústia.

Compassos incompletos dando-me esperança... e medo.

Se tua beleza contemplativa for inatingível em tons?

E se, sem um tom certo, eu me perder cromatizando?

Já não importa mais, é atonal, dodecafônico.

Quem sabe dessa forma não exista erro.

Quem sabe dessa forma silencie... a nota fermatada em minha mente.


João Carlos da Cruz Carreño é natural de Campos do Jordão (1989). Músico e Poeta, veicula o Blog Soundless Symphony



EMANUEL MEDEIROS VIEIRA


CHE AOS 80


A cadeira de balanço,
olhar fixo,
nenhum neto para o massacre da velhice,
sopa, comprimido, boina no guarda-roupa.

Não, não sabem de ti:
Tua fina estampa, cavalheiro, vive
nas camisetas
(torcedores, dondocas, misses, traficantes).
A solidão é tua: intransferível.
Vista ruim, pernas doendo, charutos proibidos.

Cuba está longe,
Argentina só memória,
lutar na África não mais possível.

O mundo te preferiu morto
em hagiografias:
santo laico.
O olhar fixa-se num ponto.
Bolívia?
Passou,
pássaro na juventude na porta
passou,
sonhos, igualdades?
Da fraternidade restou a gritaria das Bolsas de Valores, corporações, bancos.
tudo cabe num teclado
(não de piano – computador).

Não, velho, as ditaduras são outras.

A aventura acabou no mundo.

O vento sopra na tarde,
janela aberta, um velho espera o anoitecer.

(Em junho de 2008, Ernesto Che Guevara teria feito 80 anos)


EXÍLIO


Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.

Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.

Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.


SÍSIFO


Incansavelmente

bordo a túnica do passado.
Exausto, teço e desteço.
Acumulo, nunca unifico: sigo a jornada –
Sísifo da solidão planetária.

Sim, teço.
Mas é próprio do meu barro destecer sempre.
(Resta-me a memória do mundo.)

Um pouco de Mozart, e este amanhecer azul.
Celebro o instante:
se não posso convertê-lo em sempre
(sou finito),
abraço-como um náufrago sorridente.


ASTROLÁBIO

Para Lucas, meu filho

A bússola e o astrolábio:
velas ao vento.
Existe outro Bojador nestes mapas interiores?
Os navegadores estão no exílio:
há faróis neste degredo?
Findou a aventura no mundo.

Singrando-me, cumpro-me.
Além de mim, além da vida:
do pó que serei.



DESTERRO


Desterro cumpriu-me
e cumpriu-se.

O rio começava atrás de casa
(como eu),
e foi embora – afluentes.
Vento sul, Campo do Manejo, Rita
Maria, Rio da Avenida, Miramar,
bala queimada, Catecipes, Praia do Muller,
procissão do Senhor Morto, Cine Rox,
gibis, Grupo Escolar Dias Velho,
Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina
da Rua de Cima – ela nunca soube.)
Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.

O rio foi embora.
Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no
quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da
Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita,
fogão de lenha, beliches, pé de amora.

Perdeu-se o rio: não sei do seu delta.
Perdi-me: tiro certeiro na gaivota.
A rua pequena, era a maior do mundo – coração.

Desterro inunda-me:
outrora/agora.


EMIGRADOS

Emigrados:
seremos sempre,
emigrados.

Em busca de outro mar,
da última ilha,
seguindo os pássaros,
atrás do último pássaro.

De um mar a outro,
de uma ilha à outra ilha,
e, então, dormiremos,
uma noite sucedendo-se à outra.


HOMEM DIANTE DO MAR


Homem diante do mar
(instância interrogativa).
Precária caravela.
E finita: a vida

Trapiche:
o homem só contempla
(desembarcado).

No estatuto da memória:
ele se interroga, nunca mais a ação.

No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.

(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)

Desterro: instante convertido em sempre.

O homem desembarcado só pode viver de memória: diante do mar.


HIROSHIMA

Na manhã dominical,
a bomba de Hiroshima,
a bomba,
tão clara,
exata,
cirúrgica.

Bomba geométrica,
certeira.

A bomba vem do céu,
mas não é ave.

A bomba vem de cima,
mas não é Deus.

Desce fumegante,
a bomba não negocia,
a bomba não conversa,
célere, impositiva,
acerta o alvo, cai,
a bomba queima, a bomba dissolve,
a bomba dilacera.

Alguém nasce no ano em que ela cai,
e pensa naquele 1945:
a surpresa daqueles milhares de olhos,
à espera do lúdico no matinal domingo,
parques, igrejas, passeios, visitas familiares,
percebendo – sem tempo para a reflexão –
a chegada da não-ave,
emissária de Tanatos,
que cai, cai,
na paisagem limpa (cogumelos atômicos).


LENDO EMILY DICKINSON

Para Célia de Sousa

Poderia ser 1830,

quando nasceste,
mas é 2008,
chuvoso domingo de março,
não publicaste livro em vida (o que menos importa).
“Ela chegou afinal, mais ágil porém a Morte
Havia ocupado a casa:
A pálida mobília já disposta,
Junto com sua palidez metálica” (...).
Só poeira e esquecimento,
nada dura,
Felicidade efêmera – ler teus poemas, Emily.

O domingo fluindo,
tempo: linha reta de eterna agonia.
Não existe presente, só passado.
Nem futuro.
A namorada de 1968 jaz num cemitério de aldeia.
“Empoeirado se mostra o mundo
Ao nos deitarmos para morrer”.
Sim: “Tão longe da compaixão quanto a queixa
Tão frio às palavras quanto a pedra.
Tão insensível à Revelação
Como se meu ofício fosse nada.”
O empenho diário é inútil?
(Para os outros.)
Ah, cidade que me atirou seu presságio
adverso.
Terá termo a espera?
Deve-se matar a morte que sobre nós se abate.
(Peço desculpas aos poetas que pilhei:
confluências.)
Aqui jaz a inocência:
a morte não existe, nós é que morremos.


BORGES


É vasta a nossa população de mortos.
O mundo, Borges,
infinita biblioteca, além – é claro – de tigres,
espelhos, labirintos, punhais, livros, proféticos
sonhos, Homero, Camões, outros cegos – você,
a sombra enaltecida não é sombra,
claridade de alguns labirintos,
portas, enigmas decifrados,
alta capacidade mnemônica.

Somos poucos, somos tão poucos,
e parecemos muitos.
“Alguém constrói Deus na penumbra”, escreves sobre Spinoza.
Amor?
É o Espírito Santo que nos escreve?
A literatura como sedução/invenção: a vida só não basta.

Irmão: fazedor de enigmas,
decifrador de espelhos,
contemplador de tigres,
este punhal que manejo agora: a construção do poema.
Nada podemos contra a solidão?
Shakespeare, Cervantes, Stevenson, “As Mil e Uma
Noites”, a Bíblia, e toda as obras desta estirpe de
mortos, mas que não inventam o silêncio: estão aqui nos livros lemos.

Somos poucos, mestre, somos tão poucos, mas não sozinhos,
parecemos muitos.
Estás junto aqui, agora, comigo,
neste maio,
luminosa manhã planaltina
(poderia ser uma rua perdida de Buenos Aires, ou da
Bahia, onde começamos).

Sim, é vasta a nossa população de mortos,
Só queria pressentir tua alma,
descobrir meus inquietos córregos, pântanos.

Iluminas o breu, mágico cego,
singrando por outros mares,
sem portulanos, astrolábios,
também breve a vida,
vejo intrusos, lugares remotos, mapas de
fronteira, duelos, a morte na poeira,
ruínas e renascimento, sombras dentro de sombras: este sol interior.

O mais pródigo amor te foi outorgado
(como te referiste a Baruch Spinoza):
o amor que não espera ser amado.



Emanuel Medeiros Vieira é catarinense de Florianópolis (1945), e vive em Brasília há 30 anos. Poeta premiado nacional e internacionalmente, é autor de 20 livros, e teve sua obra comentada - e recomendada- por Drummond, Leminski, Moacyr Scliar, Afrânio Coutinho, Cagiano, Anderson Braga Horta e Assis Brasil -entre outros.



segunda-feira, 26 de julho de 2010

WHISNER FRAGA




ROTEIRO PARA EDIFICAR O NADA

De romãs e jabuticabas
De traquinagens e pipas
A lápide grita nossos nomes grafites
E não fizemos que abandonar
Limpar as cinzas
Remeter compassos ao beijo retido
Implorar lembranças
E fui entre o barro e o cimento
Carpir abatimentos e derrotas
E suspirar
De tanto laço que é feita a perda
E a dor é erguer vazios
Entranhar dissonâncias
Degredar a busca de dois
E é por isso
Apenas.


PARA COMPREENDER SAMAMBAIAS

E pregos.
Raciocinar semelhanças
Desbotar empecilhos e respirações
Naufragar ocos e gentilezas
E inutilidades
Orgulhar alçapões de papel
Lustrar lágrimas de árvores
Condenar pequenezas
E imensidões
Lamber deuses de açúcar
Rastejar esperanças
Abraçar sóis e muros
Alcançar destinos
Ou iniciar trajetos
Ribombo de sistros
E depois se calar
Feito sopro de beija-flor.


PARA ESCOLHER FORQUILHAS

Optar pelo galho mais alegre
De goiabeira de fim de cinza
De noite arredia
E sacis xeretas
Enfim se decidir pelo corte:
Improvável cumprir completo a vida
Esticar braços condoídos
Para teste da melhor goma
E divertir dos amigos
A penúltima manhã amarela
Não alvejar canários ou azulões
Nem estrelas
Acolher o travesseiro o estilingue
Ao presságio de outras guerras.


INVENTÁRIO

Um peão de acaju
Uma jamanta e treze carrinhos
Palpitar incômodos
Um deslize
Duas histórias de amor
Uma discussão com o melhor amigo
Um videogame Atari
Vinte e cinco contos inacabados
Três cadernos de rascunhos
Duas begônias pisadas
Oprimir mágoas
Um coro
Hino nacional, da bandeira, da pátria
Aritmética da Emilia
Uma lapiseira verde metálico
Horas ultrapassando coisas
E dias a perder de conta.


AO REVELAR PARA-SEMPRES

Cabe-me a tutela dos répteis.
Entrelaçar aços e trigos
Percorrer tranças
E anelos sustenidos
Metamorfosear garatujas
(amor delineia esconderijos)
Palpebrar lábios
Sibilar madrugadas
Quando porém ceder.


RECEITA PARA DESORDENAR AS ESTRIAS DO DELÍRIO

O bom-gosto da vingança sob o gesso do desespero
A traição que rasteja nas barras das sobrancelhas
As invisibilidades tardias
O vento desmascarado pela poeira
O colarinho malpassado do idealismo
A avenida Brasil empestada às cinco da manhã
Um tumor de buzinas arruína o parto da luz
E a seiva da perda engravida fatalidades.


Professor, autor de A Cidade Devolvida, O Livro dos Verbos, O Livro da Carne, As Espirais de Outubro e Abismo, o audaz e inovador Whisner Fraga é um dos mais consistentes nomes da Literatura Brasileira contemporânea, vencedor de inúmeros – e importantíssimos- certames literários. A cada novo livro lançado, a certeza de que sua vasta obra encaminha-se para a posteridade. Que o digam seus fiéis leitores.

LUIZ ANTONIO CARDOSO


O MAR DAS INCERTEZAS

Meu coração, um tanto triste e errante,
Lançou-se ao mar, em busca de emoção.
E navegou, um tanto quanto arfante,
Esperançoso, atrás de uma paixão.

E a cada dia, estava mais distante,
Querendo achar a tal consolação,
Para tornar seu mundo mais radiante,
E dissipar de vez a escuridão!

Mas nada viu naquele navegar,
Onde seu sonho iria naufragar
Num turbilhão de tantas incertezas,

Quando encontrou você naquele dia,
No qual desfez-se toda a fantasia
... E o amor nasceu, clamando por certezas.


AMIGOS

Meu triste coração, com restos do passado,
Não cansa de cantar meu belo alvorecer,
Onde já pequenino, avistava o estrelado
Céu, que acompanharia o meu desenvolver.

Alegre sempre andei, tão bem acompanhado
De amigos, de esperança e sem esmorecer,
Sabendo que teria alguém sempre ao meu lado,
A ofertar um sorriso... e a mão a me estender.

Por isso graças dou a Deus, meu Salvador,
Que sendo o Grande Amigo, Oásis desse amor
Que vemos pela Terra, apenas em resquícios,

Lançou em meu caminho amigos verdadeiros...
E quando triste estou, recorro aos companheiros
Que mostram um olhar distante dos meus vícios.


NÃO ME FALES

Não me fales mais nada sobre as dores
De minha amada, pois meu coração
Tão triste, já cansado de ilusão,
Não mais suporta tantos dissabores.

Não me fale sobre atos incolores
Que inundam o universo da paixão!
A vida é muito mais: é imensidão
De aromas, de beleza e de sabores!

Seu mundo poderia ser coberto
De abraços, de carinhos infinitos...
Mas eis que segue pelo rumo incerto!

Por isso não me fales nunca mais
De amor... nem dos tropeços inauditos,
Daquela que não hei de ter jamais!


NÃO É TARDE


Neste querer, que tanto me angustia,
Sendo da vida, um simples aprendiz,
Desfez-se minha doce fantasia
De um dia, tão somente, ser feliz.

Vejo na imensidão a noite fria,
Que vem sacramentar o que não fiz!
Sonhos-estátuas dormem, e a poesia
Aponta, a cada instante, a cicatriz.

Mas eis que a natureza, sem alarde,
Sussurra em meus ouvidos: “Não é tarde...
Abre teu coração... que o amor te espera!”

E um novo sentimento surge... aflora!
Esqueço o passou e sem demora
Faço de mim eterna primavera!


Luiz Antonio Cardoso é um dos mais atuantes poetas da atualidade. Paulista de Taubaté, preside a UBT de Tremembé (SP) e é membro de Academias de Letras em Taubaté e Natal (RN). Autor das obras Certa Vez..., Madrugada, Solidão-Sonetos Clássicos, entre outros, prepara-se para lançar A Quarta Bandeira, seu livro de Crônicas. Estudioso de arte e exímio sonetista, revela-se uma testemunha viva e atuante do fazer literário brasileiro.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

EUNICE MENDES


AURORA GRIS

Ainda é quente a noite e não dormi
Olho lá fora e vejo uma Aurora Gris
Quase chove e ainda não há sol
Não sei se o que sinto é ser feliz
Ou não sei se sonho ou não dormi
O que dá no mesmo se me invento
Porque a verdade é também mentir
Nesse dia quase ainda noite nessa Aurora Gris
Neo me importa o tamanho nem o todo
Tenho aqui tudo que sempre ou nunca quis


SEDE DE AMOR

A tua sede de amor
Quis beber do meu corpo e alma
E depois naufragou

Teci uma rede de sonhos
Que te enredou
Era tanta água, tanto amor...

Tua alma tudo suportou
Tantas vagas, tanto abismo
Tanta dor e, depois, a calma

Tudo em ti foi essa sede
E esse amor
Tudo em mim, a rede

Feita de sonho invisível
Que nesse mar se perdeu
Que nesse mar transbordou...


***

tudo o que faço
já não parece meu
de mim se desprendeu
feito um laço

nó esgarço
pelo tempo

***

minhas saudades
enchem um poço de lágrimas

dentro dos meus olhos
já se pode ver o fundo
refletido nas estrelas
pontilhado de escuros

***

porque
essa pressa de paisagem
em janela de trem

porque esses olhos
prenhes de saudades

porque a vida é um fato
e há sonhos sob as casas:
telhados amontoados
pontilhados de verdura e esperanças
vestígios humanos
onde cantam galos
e água escorre em torneiras enferrujadas
mãos ensaboam trapos
alisam, enrugam, secam
repousam sobre parapeitos ásperos
cobertos de musgo
e crostas de sujeira secular

porque olhos baços, quase cegos
desafiam nuvens
olhando ausentes para o nada.

e eu aqui,
ocupada em sentimentos.


***

não existem mais
as carambolas
cortadas feito estrelas
flutuando leves e aguadas
dentro das jarras de vidro
debaixo dos arvoredos
verdeamarelos de minha vó

nem as mãos
da mulher que as cortava
sobre a mesa de madeira lavada
e nem o seu prolongamento
dentro dos meus olhos
nem a faca
afiada

apenas sonhos
trocados
como olhares
feitos de memórias perdidas
de outros lábios contadas
de outros olhos
fechados
permanecendo acesos
-antepassados


***

derramei meu amor num leito
desprovido de sonho e sentimento
-depois, entreabri meu peito
para que lhe açoitasse o vento

meu coração ainda pulsa aberto
pelos vestígios deixados dentro
pela amplidão vazia do deserto
que o eterno alijou do tempo

o amor sobrevive intrínseco
adormecido nas areias quentes
mas meu peito vai ficando seco
e minh’alma se deixando ausente

beberei águas de fontes frias
para saciar a sede dos desejos
serão sombras do sonho onde ias
naufragar tua boca nos meus beijos

depois terei tudo perdido
o verdadeiro espírito, escondido
o paraíso interior todo desfeito
e uma pedra bruta dentro do peito


***

naufragas perdido nos mares

e tens as duas mãos feridas
te agarras nas pedras frias
te açoitam as franjas dos ares

tudo é uma batalha perdida
a morte te espera na praia
tua alma deserta e vencida
pelos amores desfeitos desmaia

quimeras perseguidas em vão
são tuas ilhas ausentes
são céus que inventas, são pão
são tua porção de sementes

são teus olhos no horizonte
cegos de tanta ilusão
são nuvens sobre os montes
fugindo na imensidão

são outros mundos silentes
cobertos de bruma e flores
são abraços e beijos quentes
numa cumplicidade de amores

naufragas perdido nos mares
mas tens um leme nas mãos:
os céus para te abraçares
e os teus sonhos por chão


***

tudo o que faço
é sonho
tudo o que teço
recomeço

tudo o que peço
é nada
tudo o que tenho
é tudo

só quero ser
quem não sou
só quero ter
sossego e saber

tudo o que cedo
esqueço
tudo o que dorme
amanheço

quem me vê
um pedaço
não me sabe
inteira


***

existe sempre
duas coisas acontecendo
ao mesmo tempo
uma por fora
outra por dentro
e um único jeito
de atravessar a ponte:
de mãos dadas
com o nada

e deixar guardadas
as outras formas
de expressar o sonho
primeiro por fora
depois por dentro
e tudo será somente
: ausência


***

meus olhos
perdidos
na paisagem
embebidos
na miragem
sem fundo
de um poço

atração do abismo
frescor de aragem
paixão cega de um sonho

horizonte que se alarga
e me abraça
como céu que se espraia
sobre a secura da terra


***

minha vida
não erra
por salas de espera

minha vida
se atira
pelas janelas


EUNICE MENDES: formada em jornalismo, possui vários livros organizados e tem poemas publicados em vários fanzines, revistas e jornais de todo o país. Também edita a folha poética A POETISA.

WALMOR DARIO SANTOS COLMENERO


OSCULÁRIO
À Eunice

No ósculo há o deserto das palavras,

imagens que o tempo não guardou,
espelhos que refletem muita história,
vitória vencida que ficou...
No corpo, vago, virgem de desejos,

segredos das lembranças
restaram sonhos, cores, beijos...
O amor que, enfim, se transformou.
No ósculo livre da imagem,

passagem que em mim desembocou,
é o rio que passou como viagem
na flor floriu, desabrochou...


LONGE...

Guardo ainda comigo na memória
um pouco da saudade,
do amor,da vitória de um bem,
do olharque se tem ao se encontrar.
Ainda tenho, apesar dos anos,
os adeuses que foram ditos,
amores esquecidos,
lembranças malogradas.
Restam o consolo, o alívio,
o suplício, o sorriso e tudo.
A vida que insiste,uma boca,
um desejo, uma inspiração,
pois longe é muito longe e deixa mudo,
mas ainda é um lugar que não existe.


CIRANDA
Para Luiz Antônio Martins Pimenta

Do artista fica a arte.

Da arte fica a essência.
Da essência fica o sumo.
Do sumo fica o suco.
Do suco fica o sabor.
Do sabor fica o prazer.
Do prazer fica a vontade.
Da vontade fica o conhecimento.
Do conhecimento fica a palavra.
Da palavra fica o poeta.
Do poeta fica o artista.


RÉQUIEM III
Para Teresinha Tadeu

A negra lambe as feridas da alma
e cospe na cara do ouvinte, do leitor.
Cospe e ri.
Ri com sua cara gorda e cheia de dentes.
A negra grita com instintos de loucura
na sanidade da vida turbulenta,
com seu mundo vazio,
objetos de desejo
com lampejos de poesia racional.
A fome que percorre o seu estômago
é a fome do mundo e ninguém sabe...
A tampa de margarina serve de arte,
na arte louca das ruas,
na comida velha colada na roupa.
A negra enegrece o mundo com sua poesia crua,
sem pieguice, sem rótulos, sem amores sutis.
É apenas poesia.
Lá vai na memória
a negra que gostava de ser negra.


POEMA DA MANHÃ DE UM NOVO DIA

O novo dia está aí,
o teu rosto vem beijar-me a face,
retratos que mostram o que vivi,
o teu longo e caloroso enlace.

Há nos teus olhos a juventude esquecida,
os tempos passados nos segredos,
longínquas eras, alegria perdida,
ou quem sabe conhecer seus medos.

Não importa! Quero fazer esse poema do dia,
esse mesmo que o vento levou,
certa vez, no lugar que escrevia,
teus olhos pousaram no meu olhar que restou.

O silêncio! Aquele que tua boca ao me dizer
pronunciou, esperando um só achado,
o lacre dos segredos do viver,
quem em tua boca há de ter ficado!


UM MOMENTO

O hálito da noite percorre o meu corpo e o teu,
habita em mim o nosso sabor de vida que é meu,
que existe em seu olhar de desejos.
Semeio a tua felicidade
e a tua liberdade
coroada de beijos.
A noite é nossa e da lua.
A vida é bela e é tua.
O coração é do cristal mais puro
a passear pelos campos da memória,
tendo ao vento o sabor da tua vitória
e ao teu lado o segredo do futuro.
O hálito da noite não é mais tão sufocante,
tem o cheiro e o enigma dos amantes,
os mistérios que guardo no retrato depois.
Retrato este que cultivo aqui no peito,
que se confunde com teu rosto, desse jeito,
que se inicia na viagem de nós dois.


MINHA CASA

Minha casa tem canteiros
com begônias que eu plantei.
Minha casa tem amores
de amores que eu nunca dei.
Minha casa tem um velho
solitário que ainda vive.
Minha casa tem lamentos
retratos que eu nunca tive.
Minha casa tem janelas e vidros de algodão,
Tem pomares, tem flores feitas de coração.
Minha casa tem as cores
todas de tom bem forte!
Engraçado!
Minha casa não tem cheiro de morte.
Ah! Minha casa tem lugares
que ainda não conheço.
Minha casa tem esquinas
por onde quase padeço.
Minha casa tem artistas
cada qual tem seu papel. Qual serei?
Ah, minha casa tem saudade
dos sonhos que não sonhei.


SIMETRIA

A João Cabral de Melo Neto

Pedra e rio se confundem.
Lama. Pó. Sujeira. Pau.
Sonhos do norte se distendem.
Força. Solidão. Arrebol.

Faca e lâmina se afiam.
Som. Faísca. Fogo. Flor.
Símbolos de mentes se definem.
Sangue. Poeira. Vento. Cor.

Boca e voz a trabalhar.
Canto. Fato. Estribilho.
Choro e chuva faz calar.
Corpo. Esqueleto. Nosso filho.

Tudo é mistura nessa lida.
Vida. Morte. Sentencio.
Pobre morte. Pobre vida.
Toda dor tem um silêncio.


POEMA SEM TÍTULO II

Meu canto é como a água de um rio,
corre lento e mansamente,
povoa todas as frestas,ara todos os terrenos
e morre na seiva da terra.

Meu canto é como a água do planeta,
vive no vão das coisas,
nos mares bravios,
na plantação, na colheita,
na folhagem, no plantio.

Meu canto é como a água em que se banha,
é chuva, é cascata,
cobre tudo tipo mar,
despe toda alma impura,
causa amor, causa fartura,
na terra que semear.


WALMOR DARIO SANTOS COLMENERO, autor de "Um Poeta na Rua" e vários livros artesanais. Tem alcançado vários prêmios e menções honrosas em concursos de poesia em âmbito nacional. Em 2004 foi um dos finalistas na fase regional do Mapa Cultural Paulista. Tem poemas publicados em vários fanzines, entre eles: www.gargantadaserpente.com, além de co-editar a revista Poetizando, é editor da folha poética O POETA e do fanzine ESCRITOS. Também edita os blogs: www.revistapoetizando.blogspot.com. www.fanzineescritos.blogspot.com

terça-feira, 8 de junho de 2010

DALMO SARAIVA





DE JOSÉ A JOSÉ

José de Alencar! José de Alencar!
Por que deixastes Iracema sob o sol
Naquela praia do Ceará?
José de Alencar! José de Alencar!
E o guarani bebendo guaraná
Pensando que era maracujá?
José de Alencar! José de Alencar!
E o Perí ficando a perigo
Olhando para as pernas de Ceci?
José de Alencar! José de Alencar!
Enquanto isso Monteiro Lobato
Sentado numa tábua em Taubaté
Colocava o saci em suas fabulosas fábulas.
José de Alencar! José de Alencar!
E Carlos Drummond de Andrade
Sentado na praia de Copacabana
Escrevendo com o caldo de cana a palavra liberdade.
José de Alencar! José de Alencar!
José de além!
José de além!
José de Alencar!



SONHO E REALIDADE

Equilibro. Equilibro-me. Sei que já atravessei um século e estou num outro. Outro muito perplexo assim como eu. E o amanhã? O amanhã é esse hoje onde faço a massa e monto o alicerce para depois virar picumã em cima de um fogo. E se derrubo portas é para renovar a entrada. E se entro é para buscar uma saída. E se saio é porque não tive que derrubar janelas. Livre é todo aquele que nada tem a dever, mas tem o dever de esticar as asas sem mandar nenhum telegrama avisando que as horas também são prisioneiras do relógio de pulso ou de parede. Muitos riram de mim enquanto eu construía o meu circular por cima dos montes. Estiquei o círculo e cortei todos os nós. Voei. É claro que voei e ninguém viu quando pousei nos telhados de vidro. Fiquei lá em cima e não tive pressa porque tudo que flutua, um dia pode retornar ao chão. Acendi fogueiras. Fiz sinais. Conversei com a tal de intuição. Pedi licença ao dia para me despedir da noite. Dormi sob o teto de milhares de estrelas para depois acordar mais ameno e humano. Uma maneira de falar apenas o necessário diante das pedras. Com as pedras aprendi aceitar as perdas porque nada mais tenho para ganhar além da vida que me deram. Pinto de azul esta escrita que não deixa de ser uma fantasia e não deixo de dar uma pitada de realidade diante de tudo que vejo e vivencio. E amanhã quando eu esticar essa corda bamba, possa passar por cima dela sem pressa e lá adiante dizer que valeu a pena
misturar sonho com realidade. É que todas as manhãs eu acordo com o sonho na cabeça e a realidade nos pés. E se essa vida é uma caixa de segredos, ela está sem trinco e sem tramelas. Nada mais posso fazer além desse viver.
É o suficiente. É o SUFI ciente.


PEDRAS DE VIDRO


Aprendi muitas coisas
No curso dos rios.
Amarrei outras coisas
Nas linhas das palmas das mãos.
Com o pé de vento aumentei
Mais ainda os meus passos
Para poder me agarrar
Nas barras da vida.
Com o olho d’água
Comecei a enxergar melhor
As pedras de vidro
No espelho da alma.


COMUNHÃO

Ajuntar amigos, não correr perigos;
Deitar no mato, não desafiar o tempo;
Semear a voz, colher palavras;
Cortar o mal, viver o bem;
Andar sem rumo, buscar uma direção;
Fechar os olhos, abrir a visão;
Sentar no deserto, imaginar uma floresta;
Beber a água, irrigar plantações;
Sentir o medo, avançar com coragem;
Se perder no dia, se achar na noite;
Naufragar no mar, descobrir oceanos;
Rasgar o pano, fazer um manto;
Cortar a terra, descobrir o universo;
Unir o verso, formar um poema;
Agrupar crianças, educar os homens;
Apanhar da vida, morrer tranqüilo;
Colher a fruta, plantar a semente;
Filtrar o sono, dormir tranqüilo;
Sonhar com a guerra, acordar em paz.


*********
De dia é amante.
De noite é diamante.
Estrelas e folhas secas.


*********
Não leve para um Shopping
O meu nome.
Deixe na porta o sobrenome.
Divida aquilo que te sobra
Com quem não come.


*********
Eu vi um braço do mar
Chupando manga de camisa.
Zeus fez chover canivete
E Moises pintou o mar de vermelho
Na tabua das marés.


*********
Há uma criança
Dentro de um homem.
Há um homem
Dentro de uma criança.
Ambos passeiam e sonham
Vestidos de gente.


*********
Venho dos sonhos distantes,
Das nuvens, dos desertos.
Venho de onde
Os ventos resmungam
Das curvas, dos rochedos.
Venho das asas dos pássaros,
Os de dois bicos, de três asas.
Venho das passadas largas,
De lugares estreitos, o claro.


*********
A nossa história
É cheia de geografia.
Somos andarilhos
Andantes andinos.


*********
A grande cidade
É a capital do Estado.
O estado de nervo.
O estado de sítio.
O crime organizado.
A guerra civil.


*********
O branco no preto.
O preto no branco.
Café com leite.
Ninguém mistura
A água e o azeite.


*********
Com o peso de meus erros
Rasguei a terra.
Me vesti de carne e osso
E caí no mundo
Guiado pelo meu pescoço.


*********
Lampião e lamparina.
Um explode a tocha.
O outro é a luz que ilumina.
O raio do corisco.


*********
Quase todos os poetas
Morrem cedo.
Eu prefiro morrer
À tarde para poder
Pegar o sol da manhã.


*********
Passarinho na gaiola canta
Porque não sabe chorar.


*********
O plural de deu
Não é deram.
É Deus.
O resto é singular.




Dalmo Saraiva (Rio de Janeiro) é um artista múltiplo: jornalista, escritor, poeta, teatrólogo e pesquisador, com destacada atuação em grupos de arte popular. Já publicou “Urubu” e o livreto “Zoiudo foi pro Beleleu”. Publica regularmente o folheto “Feijão com Arroz” e tem pronto pra publicar o livro “Santo de calça não faz vinagre”.

MARIA ROMANA


ALGO QUE NUNCA CHEGA

No crepúsculo do fim de tarde,
O sol aproxima-se do acaso
E a luz, já sem fulgor,
Lentamente se desvanece.
A noite aparece,
Com ela o mistério e a incerteza.
Quantas vezes, no silêncio da noite,
Alguém circula sem rumo certo,
Procurando um bem impossível,
Um “canto” onde possa repousar
O corpo “mal tratado”...
Encontrar
Um companheiro, um amigo,
Para desabafar as penas da solidão...
E, circulando, sem direcção,
O crepúsculo da manhã aproxima-se,
Semelhante ao da tarde;
A alvorada começa a despontar,
O sol surge no horizonte,
Estamos em pleno dia;
Novamente surge a noite.
A cena repete-se.
Os dias e as noites sucedem-se
E alguém espera algo... que nunca chega!...



DESILUSÃO!...

Eu queria ser algo com suporte,
Mas sou humilde rio, deslizando...
Por entre altas vertentes, vou rumando
Nas esp’rança de alcançar inda o meu norte!
Queria a liberdade de um Oceano,
E ser a magnitude, a Terra imensa,
Um sonho sublimado de presença
Num mundo transparente e mais humano!
E não a triste imagem conturbada
Que perdeu robustez, toda a harmonia,
E doces sortilégios de magia...
Agora vejo nada –igual a nada!
Porque sou linfa turva obstruída,
Quando queria ser a claridade
E ser na própria essência, na vontade
O Mar deste universo e a cor da Vida!



LÍNGUA... MATERNA

Minha língua materna é portuguesa
E é por excelência soberana;
Camões a enalteceu... lhe deu beleza
Ao escrever a heróica “Lusitana”!
E por ser valiosa e com rigor,
Sublimou a nobreza do seu povo
Que no mundo alcançou real valor...
Mas foi adulterada... e eu reprovo
A forma como está a ser tratada
Sofrendo de “pobreza”... e quem se importa?!
A língua que era rica, bem falada,
Anda agora a pedir de porta em porta!

O idioma firme, em meu país,
Ref’renciava o estilo e argumento
E o gosto p’la leitura era a matriz,
Em obras de escritores... com talento:
Guerra Junqueiro, Eça de Queirós;
Garrett e Herculano... e na memória
João de Deus, que dera a meus avós
A luz da “aprendizagem obrigatória”...
Araujo Correia e o Pessoa
Fizeram da palavra algo divino!...
Por isso, em meu ouvido ainda soa
A língua que aprendi em pequenino!



O MEU RITUAL

Eu sou humilde rio, descuidado,
Trilhando por vertentes de euforia;
E envolve o meu caudal tão delicado
A esp’rança de encontrar paz e alegria!

Meu vigor para o mar vai ser lançado
A fluir os murmúrios da harmonia
E sorrindo ao porvir que é desejado,
Emerjo nas enchentes... dia a dia!

Faço do meu destino um ritual
Correndo com a força natural
Na plena transparência, da minh’alma!

Por ser a minha essência a própria vida,
Sou água firme, activa na subida,
Descendo p’la corrente que me acalma!



OH TEJO, MEU RIO FAMOSO! ...

“OLHA, O TEJO VAI TÃO TRISTE”,
Por já não ser o que era
Pois, agora, nele existe
Um mal que o desespera
“A CORRER TÃO VAGAROSO”
Não tem pressa de chegar
Ao ponto mais arenoso
E a vida não encontrar.

“OLHA, O TEJO VAI TÃO TRISTE”,
Vai carregado de mágoa,
Porque o mal, ali, persiste,
Poluindo a sua água.
“A CORRER TÃO VAGAROSO”
Por não ser aquele rio,
Imponente e poderoso
E que, outrora, ali sorriu.

“OLHA, O TEJO VAI TÃO TRISTE”,
E também suas gaivotas;
Algo cruel não desiste...
No escuro das horas mortas!
“A CORRER TÃO VAGAROSO”
Murmuras já, sem alento
Como eu, audacioso
- Chora, agora, o sofrimento.

“OLHA, O TEJO VAI TÃO TRISTE”,
Coberto de chicotadas
A vida ali não resiste
Nas águas tão perturbadas.
“A CORRER TÃO VAGAROSO”
E o coração destroçado,
Oh Tejo, meu rio famoso
Que tormentas tem passado!...



Maria Romana da Costa Lopes Rosa, natural de Tavira, residente em Faro, Portugal. Membro de várias Associações, algumas como sócia fundadora – Academia Antero Nobre; Ajea (Associação de jornalistas e escritores do Algarve) ; Clube da Simpatia; Associação dos Antigos Alunos da Escola Secundária Tomás Cabreira e Elos Clube de Faro; Sociedade Portuguesa de Autores; Direcção dos Espectáculos de Lisboa, Concorre a Concursos Literários… tendo sido distinguida em prosa e verso – crónico, conto e soneto… Grande apreciadora, entusiasta e divulgadora de novos poetas brasileiros na Europa.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

EDSON BUENO DE CAMARGO


COZINHANDO FEIJÃO

Nunca viu
Sua bisavó
Filha

Cozinhando feijão
Em panela de ferro de três pés
No braseiro que havia
No fundo da casa grande

Se sentes hoje
Compelida a dotes de bruxa
Talvez também deva a ela

Em meio a vapores e fumaça da lenha
Completando a água
Amassando alhos
Assuntando o tempo
Por entre os galhos das jabuticabeiras
Nos benzia o tempo todo
De mau-olhado e de banzo de criança

Minha vó cozia bordados infinitos
Em panos vindos de Santa Catarina
Cabelos brancos revoltos
Óculos na ponta do nariz

A casa na cidade
Nunca foi bem ao seu gosto
Foi adaptando os ares de sítio
Horta, fogão improvisado no quintal
Seus santos em altares espalhados pela casa

Se bem que o que não esqueço
Era seu olhar de descanso
Seu sorriso curto
Quase infantil

Minha vó
Era a madrinha que eu nunca tive


OUVIDOS DE GATO

Minha vó
Com ouvidos de gato
Ouvia toda a casa

Rangidos
Da memória do sol

Eu
Observava aranhas
Tecendo a morte de pequenos insetos
Nos esteios
(a velha casa não tinha forro)

Troncos roliços enegrecidos de fumaça
Fogão de lenha
Fumegando as brasas

As velhas telhas
Abrigavam ninhos e nichos
Me assombravam criaturas invisíveis


GAVETAS DE GUARDADOS

Meninos correndo buliçosos
Nas ruas de pedras inocentes
De corte preciso e exato

Granitos históricos
Caminhos
Muito percorridos

Dentro da casa velha
Paredes brancas e encardidas
O quarto semi escurecido
Teias e picomãs

Gavetas de guardados
Grampos de cabelo enferrujados
Projéteis da revolução
Bulas de remédio
Anotações inconclusas e inúteis


CEMITÉRIO DE VILA VITÓRIA

Brincadeiras infantis
O alto-falante da igreja
Tocava uma canção do Taiguara

Aqui o silêncio
Entre os mármores e os granitos encardidos
Cruzes e anjos sem nariz
Capim brotado em espigas
Gargalhadas e conversas lá fora

O cruzeiro
E velas ardentes
Um cheiro indecifrável

Aquele verão não volta mais
Nem o seguinte

Calor do meio-dia insuportável
Brincadeiras entre os túmulos
Esconde-esconde
Com um certo receio
Um medo escondido sem revelar
(todos tinham, porém ninguém admitia)

Havia a estátua da santa
Que meu amigo jurou que se mexeu
Acompanhava com o rosto quem a fitasse
Até hoje passo ali com arrepios na espinha

O tempo passou
Agora só volto ali por obrigação
Fujo daquele lugar
Tenho medo, agora admito

Temo
Que eu entre para ficar


MEIO ALUADO

Minha avó
Sempre dizia à minha mãe

Este menino é meio aluado
Estranho e taciturno
Parece que fala em outra língua
Nas suas engrolações

Vê coisas em cima do guarda-roupa
Que só ele percebe e sente
Coleciona insetos mortos
E vidros vazios de remédio

O que esperar de meninos estranhos
A não ser que virem poetas


UM VELHO AMIGO

Um velho amigo
Esses das antigas
Me bateu à porta

Portava uns óculos escuros
Cabelos despenteados
E um olhar no vazio

Me falou do presidente
E da crise política nos jornais
(qual crise?
Algum dia não houve uma crise qualquer
Para alguém ganhar algum dinheiro?)

Esse nós elegemos
Tomamos pauladas da polícia
E o carregamos nas costas na praça

E revolução morreu em nós
Estamos um tanto combalidos
Ficamos ansiosos
Assim como nossos sonhos da adolescência

Velhos amigos são momentos perigosos
O tempo da segadora cada vez mais próximo

E tudo o que quero ver hoje
É poesia
E meu neto em seus cueiros



Paulista de Santo André, reside em Mauá a partir do seu segundo dia de vida. Publicou, entre outros, “O Mapa do Abismo e Outros Poemas”, “Poemas do Século Passado”, “Cortinas” e “De Lembranças & Fórmulas Mágicas”. Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê, e publica com freqüência em sites e blogs.

JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA




RESSURREIÇÃO

O amor chegou, sentou-se à farta mesa.
Pensou que ali vivia o seu abraço
porém ouviu palavras ao espaço
- lamentos no vazio da incerteza.

O orgulho sério sempre no pedaço
maior, mais firme e sem qualquer fineza
abriu a porta à sádica esperteza
deixando entrar a glória do fracasso.

A farta angústia enfim, no desencanto,
tocou no amor, pediu a paz, no entanto,
além da paz ganhou um ar de aclive.

E assim as mãos se uniram sob a luz
do amor, pela humildade que seduz
e sendo eterno e terno sobrevive!



CAUSA-EFEITO

I

Quando a fonte
afina com a ponta
a ponte
não desaponta
... e o monte
não perde a monta.

Quando a chama
afina com fanal
a fama
foge ao banal
... e a lama
perpassa ao mal.


II

Quando o monte
afina com banal
a ponte
é o vertical
desmonte
nas pás de cal.

Quando a fama
se enrosca pela conta
a chama
a paz desmonta
... e a lama
ao breu aponta!!



À LÁGRIMA


Quando a esperança acorda um sonho leve
e o som da natureza se aprimora;
penumbras do passado vão embora
e o toque do relógio não se atreve...

Quando o aperto de mão à paz aflora
e a dúvida do amor torna-se breve;
o gelo da pintura vira neve
e o justo com justiça não demora...

Ressurgem as latentes pradarias;
os olhos não se enganam com a fala
e a liberdade enfim mais aparece.

Tertúlias fraternais noites e dias
lapidam o poeta que se exala
e à lágrima fervente desfalece!


AOS QUE PARTIRAM


Os nossos entes queridos
que partiram para o além
jamais serão esquecidos;
nãos nos esquecem também.

Leve pranto de saudade
refrigera o nosso enlace.
Uma brisa nos invade
e a esperança então renasce.

Detenhamos conformismo;
o futuro nos espera.
Ausência não é abismo;
presença não é quimera.

Elevemos para o céu
orações para o conforto.
E quando subir o véu...
é ver: ninguém está morto!!


João Batista Xavier Oliveira nasceu em Presidente Alves-SP-, em 16-06-1947, reside em Bauru-SP desde 1975. Possui trabalhos classificados em diversos concursos no Brasil e um em Portugal.
Veicula o blog http://jobaxaol.blogspot.com

segunda-feira, 17 de maio de 2010

ANDRÉ BIANC


Contra a Corrente
Romper com os paradigmas autoritários
Criando um novo pensamento existencialista,
Para que os modelos medíocres e imaginários
Fiquem restritos apenas aos psicanalistas.
Entender que a loucura é a mais pura razão
E vítima desta roda-viva que tem nos esmagado,
Exigindo-nos a todo instante da cruel competição
Resultados convincentes e por ela manipulados.
Ter a consciência da nossa efêmera passagem
Por esta vida que somos meros coadjuvantes
E quem sabe tentar inserir nesta paisagem?
Nossa figura na breve posteridade entediante.
Romper com os paradigmas autoritários
Criando um novo pensamento existencialista,
Conquistando cada canto do tempo perdulário
Mesmo que toda retrógada corrente resista.


Miséria
Voaram meus pensamentos ousados
Com as asas da noite vã e estérea
Pelos vales psíquicos famigerados
Desprendidos da humana matéria.
Inda que mesmo ora involuntários
Sucumbem numa compulsiva febre
Em cada canto dos fatais imaginários
E com todo o coletivo que se quebre.
E terão eles a anunciada liberdade ?
Como o animal do primitivo instinto
Entre as lutas da ilusão e da verdade
E nas ações que represento e sinto.
Voaram meus pensamentos cansados
Secou todo o sangue na frágil artéria
Vamos morrer de certo enganados
E sepultados em nossa própria miséria.


Canção Confusa
Sou o acontecimento adiado
Em tantos enigmas vazios
A face no espelho entediado
Por detrás de espíritos vazios.
Sinto a dor do choque real
E do inconformismo moderno
Flores bóiam em águas de sal
Pelas ondas do amargo eterno.
Ouço o meu poema imaginário
Sendo declamado pelos mortos
Figurantes de um velho cenário
Em atos, falas e roteiros remotos.
Ah ! cidade minha dos ausentes
Das letras que tecem finas malhas
Em cada fio do meu inconsciente
E nos frios cortes das navalhas.
E fica o poeta e o seu ócio dilema
Delirando em sua pseudo-arte
Sem saber que é extrema
A ingênua iria que em teu peito arde.
Morre o homem , o pífio anti-herói
Coadjuvante desta confusa história
Terás apenas a ferrugem que corrói
As lembranças de sua vã trajetória.



Inalcançável Amanhecer
Desigualdades incompatíveis
Obviedades longas por viver
Em todas as partes invisíveis
Um novo corpo apodrecer.
Com tantas palavras não ditas
E amores jamais finalizados
Apesar das promessas malditas
Dos velhos Deuses decapitados.
Ignoremos então a nossa morte
Certeza única e alentadora
Muito mais que azar ou sorte
A vida numa trilha desoladora.
Por fim restarão todos os pecados
Daqueles sem o menor perdão
Cometeremos os mais variados
Sem tempo para uma só reflexão.
Desigualdades incompatíveis
Obviedades longas por viver
Muito além da racionalidade
E do inalcançável amanhecer.


Adagio n° 19
(Ao Arka Hare )

Descansar as palavras na boca
Regurgitando os sonhos futuros,
Em quadros , miragem tão louca
Expostos em penhascos obscuros.
Evocar a luz em plena escuridão
Pisando nos degraus da insanidade,
Chamar os inimigos em mutirão
A declamar poesias pela cidade.
Ao final, habitar em ti , cemitério ...
Para decompor o sombrio passado
E sepultar vivo esse frágil mistério
Em covas de perdão e pecado.
Descansar as palavras na boca
Regurgitando os sonhos futuros,
Concluir que a vida é tão pouca
Pichando os sonhos nos muros.


Direções
Veja por onde andava
Rastro de pensamento,
De tudo, nada bastava
O existir do momento.
Do tempo, eu aliciava
As horas tão inocentes
E logo a noite acabava
Em espelhos dementes.
E aqui, aonde cheguei !
Dentro de mim calabouço,
Jamais saberei o que sei
Sequer num leve esboço.



Canção do Amanhã
Exilado no tempo e na distancia
Sobrevivendo em lapsos improvisos
Sem uma linha reta ou constância
E perdido pelos caminhos indecisos.
Enfrentar a morte certa, corajoso
Entender o efêmero de tudo sempre
Deleitar-me do momento em profuso gozo
Impedindo que a mediocridade adentre.
Restabelecer então os descuidados dias
E a essência perdida da lasciva alvorada
Sem que as horas raras fiquem vazias
E nem a humana loucura questionada.
E por fim, desfilar com a fina mortalha
Pelos prometidos espaços umbrais
Abraçado com a derrota desta insana batalha
Até que tudo silencie e fique em paz.



André Bianc, nascido a 17 de junho de 1957, na cidade do Rio de Janeiro, formado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou de diversos movimentos poéticos, é o idealizador e organizados do Concurso de Poesias Poetas do Vale em Taubaté, ( já na 8ª edição), um dos fundadores da Confraria do Coreto (www.confrariadocoreto.no.comunidades.net) , que apresenta semanalmente o Sarau das Sextas.

VALÉRIA VICTORINO VALLE


FLAGELO


Na Ditadura do corpo
Há uma tropa esquelética a caminho
A fim de apagar partes de nós mesmos
É a troca do natural pelo superficial
É a troça dos irresponsáveis fascinados por monstruosidades

Impera o plastificar, o siliconizar dos seres humanos
Modelo de beleza impregnado, fabricado com código de barra
Prevalece o discurso distorcido no imaginário da população
Bizarrices poderosas vencem o bom senso

E na implicância com o que ou quem Somos
Acham belo o feio, fanatismo da indústria,
São os olhos para fora e a cegueira para dentro
Exigem padrões de forma ideal (ou irreal)
É a intolerância ao incomum, às diferenças naturais

E no açougue das identidades (já não basta a mente)
Sofremos intervenções estéticas e de caráter doentio
Aceitamos a insanidade da vigilância e da artificialidade corporal
Agimos na inflexibilidade imposta pelos tops de beleza
Andrógenos vestidos de padrão flagelam-se...

E na patologia da descaracterização
Da desindividualização e da perda identitária
O espelho reflete e refrata a escravidão
Aniquila a ardência de ser livre.



SORRIR SÓ

Nos meus lábios um poema
Um sorriso de Sol
Numa reticência exigente e louca
Da gostosa fragrância da sua saliva
Sabores paradoxais
Meu corpo é teu por desejo
Não há como fugir dos seus enigmas
É o tencionar do amor e da posse
Artimanhas do sofrer
Arrepio lento e quente

No beijo épico
O amargo gosto do gostar
Num suave sorriso de resignação
Ao empreender a travessia
No amanhã incerto e vazio
O sobreviver a uma guerra de amor
Para apenas morrer de solidão
Para presentear o outro com a solidão
Solidão a dois
Sofrida Solidão Sentida
Cada ser com sua eterna solidão
Havia um sorriso solitário
No sorriso de ser sempre só.


CIÚME

Na prisão das relações reside o demônio do ciúme
Monstro escondido em cada um de nós
Tormento incessante, atitude opressora do vigiar.
No meu medo disfarçado em amor
Vacilo entre aliviar ou alimentar o mal estar da dúvida.
Sinto que o meu amor cega e o meu ciúme vê coisas inexistentes
E no meio termo entre paixão e ódio desse padecer infernal
Ultrapasso a esfera da dúvida e da insegurança.
Esse assassino do amor emerge
Desgastante, dominador, corrosivo
Destrói a minha débil ordem e o meu frágil equilíbrio
E nessa irracionalidade
Consumido e ensandecido pelo ciúme
Sinto um delírio sufocante...
Desejo extirpar a perda do objeto amado
É o afiar do mesmo mecanismo de controle
É a dilaceração pela eterna posse
Minutos latejantes e insuportáveis.

PRECISA-SE DE LOUCOS

No paradoxo da insânia e da razão
Chega de viver nas sombras da sanidade
Basta de esgueirar-se no anonimato
Agora é Ser o louco da vez
E não resistir a loucura que arrebata:
Precisa-se de Loucos

Pelado e sujo de sangue
Vejo a invencível contradição: lucidez e insanidade
Aparente decrepitude que não tem prevenção
Só tem impulsão sob a proteção da sensatez
E nessa combinação alquímica
O anormal intriga, implode em câmera lenta,
No único lugar em comum:
O hospício infindável do sem lugar, do nenhum lugar


Cabe aos loucos salvar os lúcidos
Privar do sanatório da normalidade
Loucura doentia que escraviza e esvazia
Julgar e esquecer que é julgado
Reprimir o vazio que gera a doença da alma
Encontrar sua definição de loucura já não basta
Enlouquecer o Outro é capturar a sanidade.


ERROS

Nas centenas de vozes e de vezes
Das guerras marcadas na alma
Sinto a mesma tristeza que paralisa
É a dura rotina de privações
Nos antigos apetrechos da angústia
O silêncio do mesmo preparo de amar.

Num tempo qualquer
Exumado de mim mesmo
Lembro-me dos beijos que mortificam
Assombro diante do encantamento
E apenas um beijo aguarda o desfecho
Na peregrinação dos sentimentos
Estoque inesgotável de fantasia.

No ser que repousa no Nada
Bóiam dores na passagem deixada no corpo
Maldita dor do amor e do desamor
No meu lugar cativo: Solidão
E sem nenhuma garantia do amanhã
Vivo a maquiar um não esquecer
Escondido na lascívia.

Com olhos emprestados pelos débeis
Alimento um amor fragmentado em tentos
Um amar de pouco tempero
Facilito o seu corpo e complico a minha alma
Pois nem tudo que é permitido é cumprido
E nem todos os erros são para aprender.


AVESSO

Na frágil teia da vida
Um amor escolhe um outro
Libera motivos e nos deixa cativos
Fascinantemente débeis
Restam sobras e migalhas do passado
Um gosto de amor em transparência
Que faz coisas inusitadas, esquisitas e idiotas

No paradoxo desejo e indecisão
Nos seus lábios eu me devoro
Inexplicável, ininteligível e mágico
O mais breve dos encantos
Desenho você em palavras
Escritas com cristais brilhantes do seu olhar
Olhos de topázio: duros e claros

Numa sinfonia de suspiros
Respiro o adorar pelo avesso
Uma vontade de morar dentro do outro
Desejo e Sou
Amante da paixão intrigante
Lágrima de irrigar o prazer
Dor para lapidar o viver.



Goiana de Anápolis, é autora de RETRATO 4x4: A POESIA SALTITANTE, A VIAGEM e DIÁLOGOS. Contato: vvvalle@hotmail.com / vvvalle@gmail.com / www.valeriavalle.blogspot.com