segunda-feira, 5 de setembro de 2011

REGINALDO COSTA DE ALBUQUERQUE



I

Sob a luz do lampião ela descansa,
cobre seu alvo corpo o sal do enredo
serenando-lhe o sono de criança,
e ainda corre em gotas, quedo e quedo...

Encostada à parede, dorme mansa
e vã a roupa que feri com o dedo,
quando ondulava deliciosa dança...
Pensei: ─ Agora!... Ela hesitou: ─ É cedo!...

O sonho desce... Um doce aroma emana
de exóticas flechinhas atiradas
por um cupido azul de porcelana,

ornando a penteadeira entre almofadas...
Mexe-se... e um fino traço de sultana
molda-se pelas curvas delicadas...


II

Na insônia por que passo e que me cala,
quis talhar-lhe um vestido de veludo
em lugar do outro, rico em pompa e gala,
pequeno, ideal, que não guardasse tudo...

Linha, tecido, agulha, onde há?... Contudo,
sobre este eventual papel opala,
costuro com um fio de ouro mudo,
vinte e oito versos para acarinhá-la...

Ri... balbucia... o braço ao chão pendente...
A chama treme... morre docemente...
Lá fora, o sol dardeja alto à janela.

Desperta... ─ Rápido! Vão lá sonetos!
Tramem rimas, quartetos e tercetos,
e ajustem-se à beleza e às formas dela!



Página virada


Tarde da noite, em meio à quietude das ruas,
encontro nesta banca há muito abandonada,
no entulho de jornais e traças junto à entrada,
revista masculina, expondo moças nuas.

E tremo ao desfazer a página virada...
No encarte especial, fotografias tuas
em poses sensuais dizem verdades cruas
que sangram cicatriz que imaginei curada.

A propaganda exalta algum lugar distante...
A lua espreguiçada em seu quarto minguante
lança cintilações sobre esta saudade oca...

Por um momento a banca agita a velha porta...
Se o teu vulto é ilusão ou real, o que importa?
Aplaco a minha dor beijando a tua boca...





A Santa

Parei, ouvindo o sino, em frente à escadaria,
então me aproximei do altar vazio e triste.
Toco em cálices... bíblia... e o círio ardendo em riste,
onde um fingido ‘sim’, outrora, a igreja enchia.

Pelos vitrais a etérea hóstia, além, se ergue fria...
Nada mais da outra data agora em mim existe,
triunfa o vulto atroz das ilusões que assiste
ao órgão com a nupcial e antiga melodia.

Ajoelhado aos pés da santa, lá ao fundo,
nas orações, revelo o ansiar de um moribundo...
E quando os olhos abro, a visão prende e encanta:

no santuário, um quadro único de sintaxe,
baixando o pedestal, ela beijou-me a face...
Cabeça oca me ocorre!... E se não for a santa?...



Ressurreição

Eis que volto ao parquinho abandonado...
De fato, está bem gasto, sem valia,
porções de entulho e mato lado a lado,
em vez da meninada em correria.

Olhando o carrossel empoeirado
não sei o que dá mais melancolia,
se o céu de luto todo declarado
ou nossa dupla de alazães vazia.

Ontem, quantos passeios demos juntos!
Hoje, nesses cavalos já defuntos,
encontro apenas restos de ilusão.

Mas um clarão de lendas muda o enredo...
Torna a girar o mágico brinquedo,
com a tua imagem me estendendo a mão...




Um velho

Ouço em surdina, enquanto a plena lua
banha a face da terra adormecida,
alguém contar de um bem, da mais querida,
na pequenina praça ao fim da rua.

Quem é esse que, de forma tão sentida
e saudoso da graça que foi sua,
diz frases onde o pranto se insinua
e rasga cicatriz de minha vida?

Doces lembranças vêm abrir-me a porta...
Longe a imagem de um velho erguendo a taça
de emoção que julguei há tempos morta.

Ando até a ele e o enigma me apavora...
Na solidão em que se encontra a praça,
vejo o meu triste coração que chora...







O espantalho

I

Sempre inerte naquele cruzamento,
a figura alegórica e isolada
de um espantalho erguendo as mãos ao vento
nos êxtases de eterna gargalhada.

Sem lembranças, idade ou pensamento,
sob a carícia estúpida do nada
apenas o nariz de um cão sarnento
ousa roçar-lhe a calça amarrotada.

Que faz ali alheio à plantação
em lugar tão contrário à enxada e ao grão,
nessa matéria seca e vã de agora?

Sabe-se que ele tem o dom fantástico
de retirar de um embornal de plástico,
lumes que alvejam os vitrais da aurora...


II


Certa manhã em noite se enganara,
sobre a lájea do asfalto se embaralha
um amontoado de pau, pano e palha,
no ósculo da quimera mais avara.

Da perna ao meio-fio fez-se a vara
e o povaréu em tudo mexe e espalha
gotículas do orvalho e da borralha
desse judas que o sol abandonara.

Do lábio torto um rogo de perdão...
Entre os vergões da calejada mão,
seiva, suor, lavoura... o M desfeito.

Mas antes que o esmiuçassem totalmente,
um fato surpreendeu a muita gente...
Havia um coração dentro do peito!


47 anos e campo-grandense-MS de coração. Possui mais de duzentas premiações literárias em concursos de poesias, sonetos e contos. Mais de 100 antologias. Autor do livro "Sonetos no azul da tarde", 2009. Contato: reginaldoalbuquerque@uol.com.br