terça-feira, 23 de novembro de 2010

JOSÉ CARLOS MENDES BRANDÃO


O EMPAREDADO


Eu sempre calado

entre estranhos dobres.

Eis-me limitado

por estanho e cobre.

Eis-me emparedado

no meu quarto pobre.

Ainda mais me calo,

por mais que me dobres.

Sempre o mesmo avaro,

por mais que me cobres.

Parco de palavras

e outros marcos úteis.

Nessas minhas lavras,

sempre mais inúteis.

Memórias escravas,

minhas cobras fúteis.

Meus anjos de lavas,

trevas, barros súteis.

Eis-me em lande escassa:

longe, as formas dúcteis.

Esse o meu destino.

Moldar a estrutura

de encruados mitos.

Na pedra mais dura

forjar um estilo

de vaga ventura.

Nesta arte prossigo,

hera de ternura.

Neste brando rito,

palavra mais pura.

Do quarto as paredes

a pele do corpo.

Isolam as sedes

deste vário horto,

lançadas as redes

onde tudo é morto.

Onde eram as lendas

é um olho torto.

Por que se desvendem

as vozes do orco.

E o que era talvez

um menino antigo

finda-se de vez.

Desse mito findo

o muro de peze

íntimo granito.

Dessa viuvez

no verbo falido.

– Um poema não lês,

não se lê o olvido.


A PALAVRA E A TERRA


O poeta escreve com estrelas, pedras e pássaros.

Escrever é um testemunho da alegria.

Eu sigo arando a terra com a palavra.

Venho dos lençóis de flores, que são palavras e me vestem.

Tomo da palavra como uma chave mágica.

A casa da poesia é a única morada de Deus.

O rio engole a palavra e espera o êxtase

Da rosa ao se mirar em suas águas.

Semente na língua torna belo o canto.

Palavra é como erva se alastrando, cobrindo tudo.

A flor sabe a palavra do êxtase.

A palavra tem raiz dentro da terra.

Na harpa da palavra, com os dedos em chamas,

Vou tangendo o universo.

O poeta vive à beira do abismo e do êxtase.

O pólen da beleza desenha a vida.


OS OLHOS DA MINHA MÃE


Nasce uma flor nos chifres da vaca,

Uma fonte de leite puro muge no pasto.

O orvalho da aurora me purifica.

Brotam da memória um bezerro e um touro

Voando sobre as árvores da infância.

Onde o cavalo do meu pai?

Onde o grito retumbando como o trovão?

Os centauros celestes fazem chover

Pétalas do delírio e borboletas azuis.

Um peixe curioso espia das locas na água verde

Do ribeirão correndo no fundo do pomar.

O eterno dorme ao meu lado como um cão.

Minha mãe chega à porta com pássaros nos ombros

E me mostra a face de Deus nos olhos.


CLARIDADE


O hibisco vermelho apaixona-se pelo sol,

Abre-se mais, explode, parte-se.

As folhas verdes guardam a luz e a sombra.

A borboleta aprisiona a cor nas asas abertas.

A libélula equilibra-se no caniço.

O limo recobre a pedra por onde a água escorre,

A água cristalizada ao cair das pedras da cascata.

A garça caminha com leveza no capinzal.

O pica-pau martela o tronco do pinheiro.

O beija-flor carrega a luz nas asas em delírio.

A coruja vigia a sua toca com os olhos acesos.

As palmeiras espelham-se nas águas do rio.

O monjolo sobe e desce, a roda d’água cantarola.

O melro canta à beira d’água a claridade do verão.


O TEMPO ESCORRE DOS CABELOS

O tempo não existe para o meu avô.
Chega um tempo em que não é mais o tempo
de preparar a terra, calcular a lua, a chuva, plantar e colher.
Chega um tempo em que o homem é a colheita.

O meu avô olha o horizonte, resmunga: ara!
Chega um tempo em que não somos do tempo.
O cachorro do eterno ronronando, mordendo
o calcanhar. E somos cavalos trôpegos, inúteis.

O tempo escorre dos cabelos do meu avô
que morreu com noventa e dois anos de idade
depois de muitos relógios quebrados.

Um minuto basta para acariciar o cachorro
ou para morrer e continuar no tempo,
a mão no pelo do cachorro, na morte prolongando a vida.



O POMAR DO DIA


As maritacas trincam o céu das frutas maduras,

O ouro escorre da árvore.

Olhar uma árvore é multiplicar o olhar,

O prisma das folhas me entrega o universo.

Os gerânios vermelhos entre o musgo verde,

Os cravos rosados na água brilhante do jarro.

Na forja da tarde, o martelo da araponga.

As pitangas são gotas de sangue.

A romã explode, as sementes são diamantes.

Uma cigarra quebra as vidraças da tarde.

Um melro voa de um galho de cedro.

Cálices de flores gritam no alto dos ipês,

Pássaros pingam mel.

A vida é perfeita no pomar do dia.


EQUILÍBRIO


Colore a manhã a seda simples da brisa.

Uma garça valsa na margem do rio,

O sol doura a água.

Venha beijar comigo o orvalho dos nenúfares.


O tuiuiú se levanta da água

Com um peixe de ouro no bico.

A pena da paisagem era de ouro e prata,

Cada vez mais florida a plumagem do dia.


As taboas deixavam cair os pendões

Em reverência ao azul do céu e da água.

Uma borboleta saltita no ar


Entre as florinhas amarelas.

Um flamingo equilibra

A perna fina do silêncio.




José Carlos Mendes Brandão nasceu em Dois Córregos, SP, em 28 de janeiro de 1947, e hoje vive em Bauru, SP. Publicou O Emparedado, Exílio, Presença da Morte, Memória da Terra, Poemas de Amor e O Silêncio de Deus. Ganhou os prêmios “Estadual de Literatura” (GB), “José Ermírio de Moraes”, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro de poesia do ano, V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, Brasília de Literatura, Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte” (2000, por um romance inédito, e 2002, por um livro de poesia também inédito). Tive a indizível alegria de ser seu aluno, no distante ano de 1984, no Escolástica Rosa, em Santos. Para conhecer mais da obra de Brandão, visite http://poesiacronica.blogspot.com/