quinta-feira, 27 de maio de 2010

EDSON BUENO DE CAMARGO


COZINHANDO FEIJÃO

Nunca viu
Sua bisavó
Filha

Cozinhando feijão
Em panela de ferro de três pés
No braseiro que havia
No fundo da casa grande

Se sentes hoje
Compelida a dotes de bruxa
Talvez também deva a ela

Em meio a vapores e fumaça da lenha
Completando a água
Amassando alhos
Assuntando o tempo
Por entre os galhos das jabuticabeiras
Nos benzia o tempo todo
De mau-olhado e de banzo de criança

Minha vó cozia bordados infinitos
Em panos vindos de Santa Catarina
Cabelos brancos revoltos
Óculos na ponta do nariz

A casa na cidade
Nunca foi bem ao seu gosto
Foi adaptando os ares de sítio
Horta, fogão improvisado no quintal
Seus santos em altares espalhados pela casa

Se bem que o que não esqueço
Era seu olhar de descanso
Seu sorriso curto
Quase infantil

Minha vó
Era a madrinha que eu nunca tive


OUVIDOS DE GATO

Minha vó
Com ouvidos de gato
Ouvia toda a casa

Rangidos
Da memória do sol

Eu
Observava aranhas
Tecendo a morte de pequenos insetos
Nos esteios
(a velha casa não tinha forro)

Troncos roliços enegrecidos de fumaça
Fogão de lenha
Fumegando as brasas

As velhas telhas
Abrigavam ninhos e nichos
Me assombravam criaturas invisíveis


GAVETAS DE GUARDADOS

Meninos correndo buliçosos
Nas ruas de pedras inocentes
De corte preciso e exato

Granitos históricos
Caminhos
Muito percorridos

Dentro da casa velha
Paredes brancas e encardidas
O quarto semi escurecido
Teias e picomãs

Gavetas de guardados
Grampos de cabelo enferrujados
Projéteis da revolução
Bulas de remédio
Anotações inconclusas e inúteis


CEMITÉRIO DE VILA VITÓRIA

Brincadeiras infantis
O alto-falante da igreja
Tocava uma canção do Taiguara

Aqui o silêncio
Entre os mármores e os granitos encardidos
Cruzes e anjos sem nariz
Capim brotado em espigas
Gargalhadas e conversas lá fora

O cruzeiro
E velas ardentes
Um cheiro indecifrável

Aquele verão não volta mais
Nem o seguinte

Calor do meio-dia insuportável
Brincadeiras entre os túmulos
Esconde-esconde
Com um certo receio
Um medo escondido sem revelar
(todos tinham, porém ninguém admitia)

Havia a estátua da santa
Que meu amigo jurou que se mexeu
Acompanhava com o rosto quem a fitasse
Até hoje passo ali com arrepios na espinha

O tempo passou
Agora só volto ali por obrigação
Fujo daquele lugar
Tenho medo, agora admito

Temo
Que eu entre para ficar


MEIO ALUADO

Minha avó
Sempre dizia à minha mãe

Este menino é meio aluado
Estranho e taciturno
Parece que fala em outra língua
Nas suas engrolações

Vê coisas em cima do guarda-roupa
Que só ele percebe e sente
Coleciona insetos mortos
E vidros vazios de remédio

O que esperar de meninos estranhos
A não ser que virem poetas


UM VELHO AMIGO

Um velho amigo
Esses das antigas
Me bateu à porta

Portava uns óculos escuros
Cabelos despenteados
E um olhar no vazio

Me falou do presidente
E da crise política nos jornais
(qual crise?
Algum dia não houve uma crise qualquer
Para alguém ganhar algum dinheiro?)

Esse nós elegemos
Tomamos pauladas da polícia
E o carregamos nas costas na praça

E revolução morreu em nós
Estamos um tanto combalidos
Ficamos ansiosos
Assim como nossos sonhos da adolescência

Velhos amigos são momentos perigosos
O tempo da segadora cada vez mais próximo

E tudo o que quero ver hoje
É poesia
E meu neto em seus cueiros



Paulista de Santo André, reside em Mauá a partir do seu segundo dia de vida. Publicou, entre outros, “O Mapa do Abismo e Outros Poemas”, “Poemas do Século Passado”, “Cortinas” e “De Lembranças & Fórmulas Mágicas”. Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê, e publica com freqüência em sites e blogs.

4 comentários:

  1. Amigo Benilson, você roubou o espírito do livro, bela fotografia me fizeste.

    Bons augúrios te tragam,

    Abraços

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  2. Difícil dizer de qual gostei mais. Poesia porreta. Da memória, que é um presente guardado. É muito bom ter vivido. Infeliz quem não tem do que lembrar.

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  3. Essas lembranças que nós guardamos são a nossa
    melhor riqueza.
    Esses poemas me fizeram voltar no tempo.

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  4. Gosto demais desse poeta. Além de sua habilidade e versatilidade na escrita, ele injeta insetos nos poemas. Poeta 25 horas por dia.

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