
COZINHANDO FEIJÃO
Nunca viu
Sua bisavó
Filha
Cozinhando feijão
Em panela de ferro de três pés
No braseiro que havia
No fundo da casa grande
Se sentes hoje
Compelida a dotes de bruxa
Talvez também deva a ela
Em meio a vapores e fumaça da lenha
Completando a água
Amassando alhos
Assuntando o tempo
Por entre os galhos das jabuticabeiras
Nos benzia o tempo todo
De mau-olhado e de banzo de criança
Minha vó cozia bordados infinitos
Em panos vindos de Santa Catarina
Cabelos brancos revoltos
Óculos na ponta do nariz
A casa na cidade
Nunca foi bem ao seu gosto
Foi adaptando os ares de sítio
Horta, fogão improvisado no quintal
Seus santos em altares espalhados pela casa
Se bem que o que não esqueço
Era seu olhar de descanso
Seu sorriso curto
Quase infantil
Minha vó
Era a madrinha que eu nunca tive
OUVIDOS DE GATO
Minha vó
Com ouvidos de gato
Ouvia toda a casa
Rangidos
Da memória do sol
Eu
Observava aranhas
Tecendo a morte de pequenos insetos
Nos esteios
(a velha casa não tinha forro)
Troncos roliços enegrecidos de fumaça
Fogão de lenha
Fumegando as brasas
As velhas telhas
Abrigavam ninhos e nichos
Me assombravam criaturas invisíveis
GAVETAS DE GUARDADOS
Meninos correndo buliçosos
Nas ruas de pedras inocentes
De corte preciso e exato
Granitos históricos
Caminhos
Muito percorridos
Dentro da casa velha
Paredes brancas e encardidas
O quarto semi escurecido
Teias e picomãs
Gavetas de guardados
Grampos de cabelo enferrujados
Projéteis da revolução
Bulas de remédio
Anotações inconclusas e inúteis
CEMITÉRIO DE VILA VITÓRIA
Brincadeiras infantis
O alto-falante da igreja
Tocava uma canção do Taiguara
Aqui o silêncio
Entre os mármores e os granitos encardidos
Cruzes e anjos sem nariz
Capim brotado em espigas
Gargalhadas e conversas lá fora
O cruzeiro
E velas ardentes
Um cheiro indecifrável
Aquele verão não volta mais
Nem o seguinte
Calor do meio-dia insuportável
Brincadeiras entre os túmulos
Esconde-esconde
Com um certo receio
Um medo escondido sem revelar
(todos tinham, porém ninguém admitia)
Havia a estátua da santa
Que meu amigo jurou que se mexeu
Acompanhava com o rosto quem a fitasse
Até hoje passo ali com arrepios na espinha
O tempo passou
Agora só volto ali por obrigação
Fujo daquele lugar
Tenho medo, agora admito
Temo
Que eu entre para ficar
MEIO ALUADO
Minha avó
Sempre dizia à minha mãe
Este menino é meio aluado
Estranho e taciturno
Parece que fala em outra língua
Nas suas engrolações
Vê coisas em cima do guarda-roupa
Que só ele percebe e sente
Coleciona insetos mortos
E vidros vazios de remédio
O que esperar de meninos estranhos
A não ser que virem poetas
UM VELHO AMIGO
Um velho amigo
Esses das antigas
Me bateu à porta
Portava uns óculos escuros
Cabelos despenteados
E um olhar no vazio
Me falou do presidente
E da crise política nos jornais
(qual crise?
Algum dia não houve uma crise qualquer
Para alguém ganhar algum dinheiro?)
Esse nós elegemos
Tomamos pauladas da polícia
E o carregamos nas costas na praça
E revolução morreu em nós
Estamos um tanto combalidos
Ficamos ansiosos
Assim como nossos sonhos da adolescência
Velhos amigos são momentos perigosos
O tempo da segadora cada vez mais próximo
E tudo o que quero ver hoje
É poesia
E meu neto em seus cueiros
Paulista de Santo André, reside em Mauá a partir do seu segundo dia de vida. Publicou, entre outros, “O Mapa do Abismo e Outros Poemas”, “Poemas do Século Passado”, “Cortinas” e “De Lembranças & Fórmulas Mágicas”. Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê, e publica com freqüência em sites e blogs.
Nunca viu
Sua bisavó
Filha
Cozinhando feijão
Em panela de ferro de três pés
No braseiro que havia
No fundo da casa grande
Se sentes hoje
Compelida a dotes de bruxa
Talvez também deva a ela
Em meio a vapores e fumaça da lenha
Completando a água
Amassando alhos
Assuntando o tempo
Por entre os galhos das jabuticabeiras
Nos benzia o tempo todo
De mau-olhado e de banzo de criança
Minha vó cozia bordados infinitos
Em panos vindos de Santa Catarina
Cabelos brancos revoltos
Óculos na ponta do nariz
A casa na cidade
Nunca foi bem ao seu gosto
Foi adaptando os ares de sítio
Horta, fogão improvisado no quintal
Seus santos em altares espalhados pela casa
Se bem que o que não esqueço
Era seu olhar de descanso
Seu sorriso curto
Quase infantil
Minha vó
Era a madrinha que eu nunca tive
OUVIDOS DE GATO
Minha vó
Com ouvidos de gato
Ouvia toda a casa
Rangidos
Da memória do sol
Eu
Observava aranhas
Tecendo a morte de pequenos insetos
Nos esteios
(a velha casa não tinha forro)
Troncos roliços enegrecidos de fumaça
Fogão de lenha
Fumegando as brasas
As velhas telhas
Abrigavam ninhos e nichos
Me assombravam criaturas invisíveis
GAVETAS DE GUARDADOS
Meninos correndo buliçosos
Nas ruas de pedras inocentes
De corte preciso e exato
Granitos históricos
Caminhos
Muito percorridos
Dentro da casa velha
Paredes brancas e encardidas
O quarto semi escurecido
Teias e picomãs
Gavetas de guardados
Grampos de cabelo enferrujados
Projéteis da revolução
Bulas de remédio
Anotações inconclusas e inúteis
CEMITÉRIO DE VILA VITÓRIA
Brincadeiras infantis
O alto-falante da igreja
Tocava uma canção do Taiguara
Aqui o silêncio
Entre os mármores e os granitos encardidos
Cruzes e anjos sem nariz
Capim brotado em espigas
Gargalhadas e conversas lá fora
O cruzeiro
E velas ardentes
Um cheiro indecifrável
Aquele verão não volta mais
Nem o seguinte
Calor do meio-dia insuportável
Brincadeiras entre os túmulos
Esconde-esconde
Com um certo receio
Um medo escondido sem revelar
(todos tinham, porém ninguém admitia)
Havia a estátua da santa
Que meu amigo jurou que se mexeu
Acompanhava com o rosto quem a fitasse
Até hoje passo ali com arrepios na espinha
O tempo passou
Agora só volto ali por obrigação
Fujo daquele lugar
Tenho medo, agora admito
Temo
Que eu entre para ficar
MEIO ALUADO
Minha avó
Sempre dizia à minha mãe
Este menino é meio aluado
Estranho e taciturno
Parece que fala em outra língua
Nas suas engrolações
Vê coisas em cima do guarda-roupa
Que só ele percebe e sente
Coleciona insetos mortos
E vidros vazios de remédio
O que esperar de meninos estranhos
A não ser que virem poetas
UM VELHO AMIGO
Um velho amigo
Esses das antigas
Me bateu à porta
Portava uns óculos escuros
Cabelos despenteados
E um olhar no vazio
Me falou do presidente
E da crise política nos jornais
(qual crise?
Algum dia não houve uma crise qualquer
Para alguém ganhar algum dinheiro?)
Esse nós elegemos
Tomamos pauladas da polícia
E o carregamos nas costas na praça
E revolução morreu em nós
Estamos um tanto combalidos
Ficamos ansiosos
Assim como nossos sonhos da adolescência
Velhos amigos são momentos perigosos
O tempo da segadora cada vez mais próximo
E tudo o que quero ver hoje
É poesia
E meu neto em seus cueiros
Paulista de Santo André, reside em Mauá a partir do seu segundo dia de vida. Publicou, entre outros, “O Mapa do Abismo e Outros Poemas”, “Poemas do Século Passado”, “Cortinas” e “De Lembranças & Fórmulas Mágicas”. Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê, e publica com freqüência em sites e blogs.