segunda-feira, 31 de outubro de 2011
TATIANA ALVES SOARES CALDAS
OUTROS MARES
“Metade da minha alma
é feita de maresia”
(Sophia de Mello Brayner Andresen)
Metade da minh’alma é mar
E a outra, maresia
Vem o mar, e lambe a areia
Em sensual euforia
Destrói castelos na cheia
E na rasante esvazia
Metade da minh’alma é mar
E a outra, poesia.
UMA NOVA CANTIGA DE AMOR
Reclamas do calar de minha pena
Como se teu amor eu não cantasse
Como se um pequeno e vão poema
Desse conta do quanto eu te amasse
Não percebes que o silêncio é reflexo
De um sentir em palavras incontível
De um amar tão ardente e complexo
Que me torna tal tarefa impossível
Não preciso dessa trajetória errante
De provar, numa incessante ladainha,
Que nos braços do meu verdadeiro amante
Mais que Musa, eu me torno a Rainha
ERA UMA VEZ
E no final descobriu-se que o príncipe era um sapo
Coacha e resmunga durante o dia
Ronca feito porco à noite
E a princesa, coitada,
Rola na cama pensando na sua vida de conto de fadas
Pobre princesa!
Tivesse sabido antes,
E teria ficado com o dragão...
CERTAS NOITES DE ABANDONO
Certas noites de abandono
Daquelas que roubam o sono
Aquelas que têm lua linda
Noites em que a mágoa não finda
Certas noites de abandono
Verões com cara de outono
Serões com cara de ainda
Em que aguardo tua vinda
Certas noites de abandono
Pedem colo, querem dono
Mas tua voz me melindra
E a taça já não brinda
Certas noites de abandono
Convertem-se então em motim
E eu, triste, assisto ao fim
Desse rei que ora destrono
MULHERES DE ATENAS
(resposta)
Puseste em tua viola todas as mágoas que havia
Na cidade que condena a mulher à atrofia
Confinando-a em casa, numa eterna agonia
Impondo-lhes sempre o ritmo, uma vã monotonia
Seus lamentos são calados, marcados pela atonia
Seus presságios são malditos, tomados por histeria
Tapeçarias, bordados, da mulher que ainda fia
Que aguarda o retorno do esposo, numa lenta apatia
Fiandeira incansável, tecelã-melancolia
Enquanto o viril companheiro a sua volta adia
Mesmo a virgem inocente, a que de nada sabia
Vive fadada à mesmice de uma existência vazia
Banha-se em rios, ardente, e o corpo acaricia
Mas a cidade a vigia e a moral a denuncia
Pois é negada à mulher essa febre que arrepia
Não preciso, ó poeta, cruzar os mares de um dia
Para olhar esse retrato que te motivou a elegia
Não foste entendido, poeta, não te viram a ironia
Continuam a prendê-la, clausura sem alforria
É hora, então, de calar, de cessar a melodia
E esperar que isso não passe de uma eterna profecia
A MUSA E O POETA
Se algum machão a visse, tão ardente, quase em brasa
Cortar-lhe-ia a asa, mandá-la-ia p’ra casa
Se algum vassalo a visse, pensaria que é princesa
Render-se-ia à beleza, chamá-la-ia de Alteza
Se um fiel a encontrasse, qual sibila-profetisa
Deixá-la-ia indecisa, perdê-la-ia na brisa
Se um padre a encontrasse, logo assim tão gloriosa
Achá-la-ia briosa, metê-la-ia na tosa
Mas se fosse um poeta a topar com essa Medusa
Olhá-la-ia nos olhos, chamá-la-ia de Musa.
ODEIO QUANDO ME ESTRANHAS
Odeio quando me estranhas
Quando não ouves a queixa
Quando me fazes de gueixa
Quando as iras são tamanhas
Odeio quando me estranhas
Quando puxas as madeixas
Quando após o amor me deixas
Quando liberas as sanhas
Odeio quando me estranhas
Quando ignoras, calado,
Esse amor aprisionado
Que me corrói as entranhas
LIRISMO DA BOA MOÇA
Não tangerei uma harpa
E seus toques proibidos
A mulher do não-me-toques
Tem desejos reprimidos
Não tocarei uma tuba
Hedionda e assustadora
Invocando imagens selvagens
De uma mulher predadora
A cultura mata a bruxa
Mulher fatal é uma praga
Na inquisição literária
Só há lugar para a fada
Não posso usar a vassoura
Pois me lançam à fogueira
Meu lamento arde em chamas
Minha queixa é verdadeira
Tocarei, então, apito
Em sinal de bom protesto
Nele ecoa o meu grito:
Sou poetisa; não presto
FILHAS DE EVA
De Eva sou filha
Sou filha da vida
Trazendo nas mãos
A linha bandida
Sem grana pro esmalte
Temendo que falte
Um tempo pro filho
Mas sofro e resisto
Joelho no milho
Clausura, tortura
À fêmea que salte
Mais alto que o macho
Que voe acima
Que negue o capacho
De Eva sou filha
E dela herdei
O lado cadela
O fardo-costela
A louça, a família
Destino de filha
Lembrando, perene,
O delito solene
O odor de maçã
Sou filha de Eva
Maldita e expulsa
Que causa repulsa
Nos patriarcais
E peço meus sais,
Meus cremes, meus ais
Frescuras, tonturas
De fêmea ferida
De Eva sou filha
De um Éden perdido
Lugar sem retorno
Mas olho em torno
E sigo em frente
Não baixo meus olhos
Recuso antolhos
C’um meio sorriso
E danço e blasfemo
No meu Paraíso
Que envolve prazer
Que traz uma cica
Sabor agridoce
Da gana da vida
REDEMOINHOS DE MIM
Não sei se foi Deus ou o Diabo
Não sei qual será o meu fim
Adentro sertões e riachos
Enfrento um mergulho em mim
Num disfarce-cangaceiro
Minhas trilhas são assim:
Mulher-dama ou donzela
A guerreira Diadorim
Desprezo laços e rendas
Com aroma de alecrim
Por entre rochedos e fendas
Escondo a mulher que há em mim
Busco trilhar várias sendas
Qual bacante num festim
Ao sabor de vários ventos:
Redemoinhos de mim
DELÍRIO
Batidas na porta:
Aldrava
Ofício maldito:
Escrava
Vulcão que se agita:
A lava
Voz que se liberta:
Destrava
Delírio poético:
Palavra
DE CÔNCAVOS E CONVEXOS
Deixa eu ser a tua bússola
Já que tu és o meu Norte
Deixa eu bancar o artífice
Já que tu és o meu ouro
Deixa eu ser a tua cúmplice
Já que tu és o meu crime
Deixa eu ser o teu vértice
No ângulo reto da vida
Deixa eu ser o teu cálice
E bebe em mim o teu prazer
Deixa eu ser a tua música
E me toca em harmonia
Deixa eu ser teu porto firme
Já que és minha viagem
Deixa eu ser tua bonança
Já que és minha tormenta
Deixa eu manter a esperança
Nesse amor que me atormenta
ESSÊNCIA
Sou cética
Sou ética
dialética
E isso me torna patética
Sou prática
lunática
dramática
E isso me torna antipática
Mas também sou esteta
secreta
completa
inquieta
E isso me torna Poeta
MACHADIANAS – LV
Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura
Traz nos olhos oblíquos uma faca
Desperta em mim o germe da loucura
Cruel serpente, que surge e me ataca
Não compreendo, ó estranha criatura,
Mulher que dentre as outras se destaca,
Se és doença, se és minha cura
Se és meu mar, se és minha ressaca
E tal ressaca lançou-me ao rochedo,
À maldição de ser um Dom Casmurro
Agora digo, em forma d’um sussurro:
Morri por dentro! Eis o meu segredo
O meu ciúme não mais me estraçalha
Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
SER-TÃO
Nos sertões desses Gerais
No meio do redemoinho
Enfrentando vendavais
E seguia o meu caminho
Sem jamais olhar pra trás
Buscava eu a verdade
Mais que Cristo, Barrabás
Eu roubava-me a metade
Nos buritis, no cangaço
Até o demo desafio
Ignorando o cansaço
Conquisto coragem e brio
A donzela travestida
Surge, oculta nas veredas
E eu, em busca da vida,
Vejo facas onde há sedas
Perco a bela Diadorim
Seus verdes olhos de mar
E vejo em seu triste fim
O amargo medo de amar
Chego, então, ao lado oposto
À outra margem do rio
E constato, a contragosto,
Que aqui também é vazio
Descubro então a verdade
Entre o vazio e o cheio:
Buscava a minha metade
Que sempre esteve no meio.
Os poemas acima fazem parte do livro Harpoesia (Oficina Editores, 2009), da Professora (especialista em literatura portuguesa) e Escritora Tatiana Alves Soares Caldas, uma das mais premiadas poetas brasileiras.
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Essa moça até que escreve direitinho...rs.
ResponderEliminarObrigada pela divulgação, amigo!
Beijão
Só vi agora! Que maravilha! linndos :)
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