terça-feira, 17 de agosto de 2010

JOÃO CARREÑO



DESEJO-PARADOXO


Um anjo que me ensine a voar,
como faço em meus sonhos.

Um anjo que me mostre o brilho,
que procuro em seus olhos.

Um anjo que me ensine a amar,
como leio nos poemas de longe.

Um anjo que não chore,
como fazem os poetas em silêncio.

Um anjo nem bom nem mal

que goste de Bach e Tartini,

de Victor Hugo e Nietzsche.

Que goste de mim e de si mesmo.

Um anjo que não sofra, como os poetas e os demônios.
Um anjo só meu, com tantos erros que eu possa amá-lo.

Um anjo com tantos pecados

que me faça feliz.

Um anjo que dissimule a dor sentida

e torne insólito prazer.

Um anjo que não tema
o doce prazer de mergulhar em paixão.
Pois o deleite de viver o sentimento
Compensa a dor desta batalha.

Quero um anjo, um anjo só meu...


O PIERROT

Por traz das cores do crepúsculo a melancolia é cinza e os sonhos se dissipam antes de alcançarem a primeira estrela.
Por que viver uma existência falsa? A chuva do anoitecer não traz a esperança do orvalho.
As gotas de chuva são lágrimas de gelo na mente de um poeta louco de solidão.
Carrossel de sonhos, numa noite de pesadelos infindáveis as asas do anjo negro batem, cortando o vento gélido da indiferença.
Seu castelo de ilusões é cercado por esperança. Insegurança de uma alma frágil.
Como a aurora inconstante, anjos visitam-no em sonho. Espantando seus demônios.
O Menestrel caído já não tem mais a nobreza de outrora. Agora mendiga restos de piedade e compaixão para alimentar sua alma faminta de afeto. O brilho ofuscante de sua alma agora é pálido, incerto e inconstante. O calor em suas veias já não mais aquece seu corpo físico. Seu olhar distante observa o etéreo cada vez mais próximo.
Agora não é nada além de uma marionete de lamúrias, tristezas e melancolias. Não há mais felicidade, não há mais concubina. A solidão devora todas as cores em suas memórias, silencia a melodia de sua alma e exorciza a esperança de seu peito. Fica apenas o vazio. O nada envolto em amargura.
Ao adormecer, sua alma procura as estrelas através da neve da madrugada. Uma pergunta sobe aos céus como uma prece. “Quando o sofrimento cessará?”

Mais uma última vez a luz volta a seus olhos, a música renasce em seu peito e suas veias se aquecem como num alvorecer de primavera. O cheiro de rosas inebria sua mente como o mais doce vinho.
Seu castelo se ilumina e sua princesa o espera na mais bela torre. O Menestrel se ergue mais uma vez e se eleva com suas asas de arcanjo.
Um último vôo, sem lágrimas ou medos, até sua concubina. Na mais gélida madrugada.


ANTÍTESE ESSENCIAL

Desejo com todas as minhas forças adormecer, transcender mais uma vez.
Fugindo da insônia habitual, que me obriga a sorver do cálice de realidade.

Estilhaços de um espelho quebrado refletem feixes de esperança.
Através dos vitrais o futuro em cores vivas transfigurando a realidade mais uma vez.

No sonho gélido de inverno, nuvens negras dançam no céu triste.
E lembranças se espalham como anjos.
Asas negras e alvas em contraste.

Memórias azuis de esperança dançam sobre o cinza pálido. Dando-me forças para olhar em teus olhos tristes
Mesmo sem ver tua alma, não me sinto só. Uma vez que tenho meus sonhos.

Paradoxo onírico
Amar-te sem conhecer-te.
Ter-te sem conhecer-te.
Amar-te sem ter-te.

A beleza simples da alma, através da névoa dos cegos de espírito, torna-se

Pecado existencial insólito.

A realidade é banhada por indiferença.
Ignorância torna-se sabedoria. Na qual tolos se banham como em um rio de lágrimas e ira.

Não há lagrimas neste mundo
Que limpem o passado,
Eternizem o presente.
Nem moldem o futuro.

Não há ira neste mundo
Que mude uma alma.
Corrija um deslize.
Ou modifique uma existência.

Mesmo que gélidos, tenho meus sonhos.
Meus anjos com a esperança.
E sei que além do inverno melancólico
Ainda brilha a luz da aurora de perfeição.


QUARTA AUMENTADA


Nesta euforia, as cordas em tristeza silenciaram.

Eu calado contemplava as luzes aleatórias.

E sobre a água, a névoa, e além da névoa?

E além de mim? Além do som? Além de sentir?

O silêncio cadenciado em medo e angústia.

Compassos incompletos dando-me esperança... e medo.

Se tua beleza contemplativa for inatingível em tons?

E se, sem um tom certo, eu me perder cromatizando?

Já não importa mais, é atonal, dodecafônico.

Quem sabe dessa forma não exista erro.

Quem sabe dessa forma silencie... a nota fermatada em minha mente.


João Carlos da Cruz Carreño é natural de Campos do Jordão (1989). Músico e Poeta, veicula o Blog Soundless Symphony



EMANUEL MEDEIROS VIEIRA


CHE AOS 80


A cadeira de balanço,
olhar fixo,
nenhum neto para o massacre da velhice,
sopa, comprimido, boina no guarda-roupa.

Não, não sabem de ti:
Tua fina estampa, cavalheiro, vive
nas camisetas
(torcedores, dondocas, misses, traficantes).
A solidão é tua: intransferível.
Vista ruim, pernas doendo, charutos proibidos.

Cuba está longe,
Argentina só memória,
lutar na África não mais possível.

O mundo te preferiu morto
em hagiografias:
santo laico.
O olhar fixa-se num ponto.
Bolívia?
Passou,
pássaro na juventude na porta
passou,
sonhos, igualdades?
Da fraternidade restou a gritaria das Bolsas de Valores, corporações, bancos.
tudo cabe num teclado
(não de piano – computador).

Não, velho, as ditaduras são outras.

A aventura acabou no mundo.

O vento sopra na tarde,
janela aberta, um velho espera o anoitecer.

(Em junho de 2008, Ernesto Che Guevara teria feito 80 anos)


EXÍLIO


Um Atlântico nesta separação:
batido coração segue as ondas de maio.
Desterros além da anistia,
para lá dos poderes.
Velas ao vento,
não bastam os selos,
a escrita crispada.
Queria os sinais da tua pele,
vacinas, umidades, penugens,
pêlos perdidos no mapa do corpo,
o olhar suplicante, soluços.

Jornadas:
missas de sétimo-dia,
retratos arcaicos.
Outro exílio:
sem batidas na boca da noite, armas, fardas, medos,
clandestinidades.

Sol neste retorno:
casa, guarda-chuva no porão, caneca de barro,
álbuns, abraço agregador,
cheiro de pão, gosto de café,
o amanhã junta os o dois nós da memória,
um menino e o seu outro: estou melhor feito vinho velho.


SÍSIFO


Incansavelmente

bordo a túnica do passado.
Exausto, teço e desteço.
Acumulo, nunca unifico: sigo a jornada –
Sísifo da solidão planetária.

Sim, teço.
Mas é próprio do meu barro destecer sempre.
(Resta-me a memória do mundo.)

Um pouco de Mozart, e este amanhecer azul.
Celebro o instante:
se não posso convertê-lo em sempre
(sou finito),
abraço-como um náufrago sorridente.


ASTROLÁBIO

Para Lucas, meu filho

A bússola e o astrolábio:
velas ao vento.
Existe outro Bojador nestes mapas interiores?
Os navegadores estão no exílio:
há faróis neste degredo?
Findou a aventura no mundo.

Singrando-me, cumpro-me.
Além de mim, além da vida:
do pó que serei.



DESTERRO


Desterro cumpriu-me
e cumpriu-se.

O rio começava atrás de casa
(como eu),
e foi embora – afluentes.
Vento sul, Campo do Manejo, Rita
Maria, Rio da Avenida, Miramar,
bala queimada, Catecipes, Praia do Muller,
procissão do Senhor Morto, Cine Rox,
gibis, Grupo Escolar Dias Velho,
Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina
da Rua de Cima – ela nunca soube.)
Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.

O rio foi embora.
Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no
quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da
Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita,
fogão de lenha, beliches, pé de amora.

Perdeu-se o rio: não sei do seu delta.
Perdi-me: tiro certeiro na gaivota.
A rua pequena, era a maior do mundo – coração.

Desterro inunda-me:
outrora/agora.


EMIGRADOS

Emigrados:
seremos sempre,
emigrados.

Em busca de outro mar,
da última ilha,
seguindo os pássaros,
atrás do último pássaro.

De um mar a outro,
de uma ilha à outra ilha,
e, então, dormiremos,
uma noite sucedendo-se à outra.


HOMEM DIANTE DO MAR


Homem diante do mar
(instância interrogativa).
Precária caravela.
E finita: a vida

Trapiche:
o homem só contempla
(desembarcado).

No estatuto da memória:
ele se interroga, nunca mais a ação.

No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço.
Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço.

(Mátria: sou apenas um homem diante do mar.)

Desterro: instante convertido em sempre.

O homem desembarcado só pode viver de memória: diante do mar.


HIROSHIMA

Na manhã dominical,
a bomba de Hiroshima,
a bomba,
tão clara,
exata,
cirúrgica.

Bomba geométrica,
certeira.

A bomba vem do céu,
mas não é ave.

A bomba vem de cima,
mas não é Deus.

Desce fumegante,
a bomba não negocia,
a bomba não conversa,
célere, impositiva,
acerta o alvo, cai,
a bomba queima, a bomba dissolve,
a bomba dilacera.

Alguém nasce no ano em que ela cai,
e pensa naquele 1945:
a surpresa daqueles milhares de olhos,
à espera do lúdico no matinal domingo,
parques, igrejas, passeios, visitas familiares,
percebendo – sem tempo para a reflexão –
a chegada da não-ave,
emissária de Tanatos,
que cai, cai,
na paisagem limpa (cogumelos atômicos).


LENDO EMILY DICKINSON

Para Célia de Sousa

Poderia ser 1830,

quando nasceste,
mas é 2008,
chuvoso domingo de março,
não publicaste livro em vida (o que menos importa).
“Ela chegou afinal, mais ágil porém a Morte
Havia ocupado a casa:
A pálida mobília já disposta,
Junto com sua palidez metálica” (...).
Só poeira e esquecimento,
nada dura,
Felicidade efêmera – ler teus poemas, Emily.

O domingo fluindo,
tempo: linha reta de eterna agonia.
Não existe presente, só passado.
Nem futuro.
A namorada de 1968 jaz num cemitério de aldeia.
“Empoeirado se mostra o mundo
Ao nos deitarmos para morrer”.
Sim: “Tão longe da compaixão quanto a queixa
Tão frio às palavras quanto a pedra.
Tão insensível à Revelação
Como se meu ofício fosse nada.”
O empenho diário é inútil?
(Para os outros.)
Ah, cidade que me atirou seu presságio
adverso.
Terá termo a espera?
Deve-se matar a morte que sobre nós se abate.
(Peço desculpas aos poetas que pilhei:
confluências.)
Aqui jaz a inocência:
a morte não existe, nós é que morremos.


BORGES


É vasta a nossa população de mortos.
O mundo, Borges,
infinita biblioteca, além – é claro – de tigres,
espelhos, labirintos, punhais, livros, proféticos
sonhos, Homero, Camões, outros cegos – você,
a sombra enaltecida não é sombra,
claridade de alguns labirintos,
portas, enigmas decifrados,
alta capacidade mnemônica.

Somos poucos, somos tão poucos,
e parecemos muitos.
“Alguém constrói Deus na penumbra”, escreves sobre Spinoza.
Amor?
É o Espírito Santo que nos escreve?
A literatura como sedução/invenção: a vida só não basta.

Irmão: fazedor de enigmas,
decifrador de espelhos,
contemplador de tigres,
este punhal que manejo agora: a construção do poema.
Nada podemos contra a solidão?
Shakespeare, Cervantes, Stevenson, “As Mil e Uma
Noites”, a Bíblia, e toda as obras desta estirpe de
mortos, mas que não inventam o silêncio: estão aqui nos livros lemos.

Somos poucos, mestre, somos tão poucos, mas não sozinhos,
parecemos muitos.
Estás junto aqui, agora, comigo,
neste maio,
luminosa manhã planaltina
(poderia ser uma rua perdida de Buenos Aires, ou da
Bahia, onde começamos).

Sim, é vasta a nossa população de mortos,
Só queria pressentir tua alma,
descobrir meus inquietos córregos, pântanos.

Iluminas o breu, mágico cego,
singrando por outros mares,
sem portulanos, astrolábios,
também breve a vida,
vejo intrusos, lugares remotos, mapas de
fronteira, duelos, a morte na poeira,
ruínas e renascimento, sombras dentro de sombras: este sol interior.

O mais pródigo amor te foi outorgado
(como te referiste a Baruch Spinoza):
o amor que não espera ser amado.



Emanuel Medeiros Vieira é catarinense de Florianópolis (1945), e vive em Brasília há 30 anos. Poeta premiado nacional e internacionalmente, é autor de 20 livros, e teve sua obra comentada - e recomendada- por Drummond, Leminski, Moacyr Scliar, Afrânio Coutinho, Cagiano, Anderson Braga Horta e Assis Brasil -entre outros.